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O
Mosteiro dos Enganos
«(…)
Ontem estava muito cansado, justificou-se o mercador, sentando-se em frente do abade.
Viajar por mar enfraquece o corpo e o espírito. Hoje, porém, depois de uma
noite bem dormida, sinto-me como novo. Então contai. Falai-me das vossas viagens.
Antegozando o tema da conversa, Rainerio encostou-se ao espaldar da cadeira e apoiou
o queixo entre os dedos. Não pensei que tivésseis tanta curiosidade relativamente
ao que tenho para contar, observou Ignazio, disfarçando a sua suspeição. O mercador
de Toledo iria falar de si, das suas viagens, mas no final exigiria do abade uma
contrapartida: um indício de verdade. Intuíra, desde o primeiro momento em que se
sentara à sua frente, que, por detrás de tanta cortesia e delicadeza, Rainerio lhe
escondia qualquer coisa. Era evidente. Ignazio imaginava já do que se trataria,
mas para se certificar teria de o obrigar a abrir o jogo. Uma conversa a quatro
olhos era, sem dúvida, o melhor sistema. Fazendo um sorrisinho matreiro, contou
como lhe acontecera assistir à quarta cruzada e à queda de Constantinopla. Falou
do doge de Veneza, que encarnara o espírito daquela expedição, e dos cruzados
que o haviam seguido. Além de extorquirem riquezas, aqueles homens não sentiam qualquer
remorso por chacinar cristãos do Oriente. Com uma ponta de vergonha, Ignazio lamentou
o facto de também ele próprio ter tomado parte nessa empresa. E embora não
tivesse matado nem ferido ninguém, a verdade é que enriquecera aproveitando-se das
desgraças dos outros.
Omitiu
as cenas de guerra e de violência a que assistira e alongou-se, antes, na descrição
do fascínio do Corno d'Oro e dos edifícios bizantinos. Mas fizera muitas outras
viagens. Depois de ter saído de Constantinopla dirigira-se para a lagoa
veneziana, aproveitando para visitar o amigo Maynulfo e os frades do mosteiro. Foi
então que nos conhecemos, lembrais-vos, Rainerio? Como iria eu esquecer-me disso?,
respondeu o abade. Foi em Março de mil duzentos e dez, tinha acabado de ser transferido
de Bolonha. Se a memória não me falha, viestes aqui em negócios. Encontrastes o
capelão do imperador Otão IV na época de passagem por estas terras, e vendestes-lhe
algumas relíquias. Ignazio concordou. Contou então que depois deixara Itália, para
se dirigir à Borgonha, e da sua chegada a Toledo, onde vivera em jovem. Seguidamente
embarcara para Gibraltar, sulcando o mar ao longo das costas de África, em
direçcão a Alexandria do Egipto. Não fez referência à razão das suas contínuas
andanças. Parecia nunca ter encontrado paz naquele incessante caminhar. Rainerio
ouvia com atenção, sem deixar escapar uma só palavra.
As vossas
histórias são incríveis, devíeis passá-las a escrito, comentou a dado ponto. Mas
agora satisfazei a minha curiosidade: o vosso ofício é descobrir e recuperar as
relíquias dos santos. A que prodígios haveis assistido em tais circunstâncias? Durante
as minhas viagens encontrei muitas relíquias, confirmou o mercador. Mas isto não
tem nada de extraordinário, podeis acreditar-me. Falais a sério? Ignazio inclinou-se
para a frente e apoiou os cotovelos em cima da mesa. As relíquias são objectos
comuns, sem qualidades milagrosas. Ossos, dentes, pedaços de peças de
vestuário... Em qualquer cemitério se encontram estas mesmas coisas. Estai atento
ao que dizeis, objectou o interlocutor batendo com o punho sobre a mesa. As
relíquias são testemunho do sacrifício e da devoção dos santos. Os fiéis rezam
na sua presença. O mercador leu-lhe no rosto o desdém, mas também sentimentos mais
profundos e ameaçadores.
Talvez
tenhais razão, disse calmamente. Mas nas minhas viagens descobri que por vezes os
religiosos abusam do culto das relíquias, tornando-o semelhante à idolatria e à
supersptição. Que palermice. Não podeis demonstrá-lo. Pelo contrário, fui testemunha
disso. Em certos mosteiros, quando as relíquias não atendem as orações dos
devotos, são lançadas para o meio das silvas ou queimadas. Vi praticar este rito
mais de uma vez, com os meus próprios olhos, e asseguro-vos que se assemelha mais
abruxaria do que a liturgia cristã. Impossível! Compreendo o vosso desdém, mas asseguro-vos
que isso acontece. Rainerio fechou os olhos e fez o sinal da cruz. A culpa é destes
tempos obscuros. Tempos de barbárie. A culpa é do homem, acrescentou Ignazio. É
ele que traz a luz e a sombra. Em qualquer lugar e em qualquer tempo. Seguiu-se
uma pausa. O abade levou o indicador à covinha do queixo. Parecia ansioso por atacar
um certo assunto. Quando já não conseguia conter-se mais, exortou: muito bem, Ignazio,
não quereis falar do vosso segredo? O mercador, que já esperava aquela pergunta,
franziu o sobrolho e estudou a expressão perturbada do interlocutor. Falemos
dele, respondeu. Dizei-me primeiro o que Maynulfo Silvacandida vos revelou a esse
propósito. Não quero aborrecer-vos repetindo coisas que já sabeis. Sei pouco, para
dizer a verdade. Rainerio enterrou-se na cadeira, com um brilho ambíguo no
olhar. Maynulfo confidenciou-me que haveis escondido neste mosteiro qualquer coisa
de muito precioso... Qualquer coisa que mais tarde ou mais cedo viríeis buscar».
Irene
Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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