quarta-feira, 25 de maio de 2016

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «Com uma ponta de vergonha, Ignazio lamentou o facto de também ele próprio ter tomado parte nessa empresa. E embora não tivesse matado nem ferido ninguém, a verdade é que enriquecera aproveitando-se das desgraças dos outros»

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O Mosteiro dos Enganos
«(…) Ontem estava muito cansado, justificou-se o mercador, sentando-se em frente do abade. Viajar por mar enfraquece o corpo e o espírito. Hoje, porém, depois de uma noite bem dormida, sinto-me como novo. Então contai. Falai-me das vossas viagens. Antegozando o tema da conversa, Rainerio encostou-se ao espaldar da cadeira e apoiou o queixo entre os dedos. Não pensei que tivésseis tanta curiosidade relativamente ao que tenho para contar, observou Ignazio, disfarçando a sua suspeição. O mercador de Toledo iria falar de si, das suas viagens, mas no final exigiria do abade uma contrapartida: um indício de verdade. Intuíra, desde o primeiro momento em que se sentara à sua frente, que, por detrás de tanta cortesia e delicadeza, Rainerio lhe escondia qualquer coisa. Era evidente. Ignazio imaginava já do que se trataria, mas para se certificar teria de o obrigar a abrir o jogo. Uma conversa a quatro olhos era, sem dúvida, o melhor sistema. Fazendo um sorrisinho matreiro, contou como lhe acontecera assistir à quarta cruzada e à queda de Constantinopla. Falou do doge de Veneza, que encarnara o espírito daquela expedição, e dos cruzados que o haviam seguido. Além de extorquirem riquezas, aqueles homens não sentiam qualquer remorso por chacinar cristãos do Oriente. Com uma ponta de vergonha, Ignazio lamentou o facto de também ele próprio ter tomado parte nessa empresa. E embora não tivesse matado nem ferido ninguém, a verdade é que enriquecera aproveitando-se das desgraças dos outros.
Omitiu as cenas de guerra e de violência a que assistira e alongou-se, antes, na descrição do fascínio do Corno d'Oro e dos edifícios bizantinos. Mas fizera muitas outras viagens. Depois de ter saído de Constantinopla dirigira-se para a lagoa veneziana, aproveitando para visitar o amigo Maynulfo e os frades do mosteiro. Foi então que nos conhecemos, lembrais-vos, Rainerio? Como iria eu esquecer-me disso?, respondeu o abade. Foi em Março de mil duzentos e dez, tinha acabado de ser transferido de Bolonha. Se a memória não me falha, viestes aqui em negócios. Encontrastes o capelão do imperador Otão IV na época de passagem por estas terras, e vendestes-lhe algumas relíquias. Ignazio concordou. Contou então que depois deixara Itália, para se dirigir à Borgonha, e da sua chegada a Toledo, onde vivera em jovem. Seguidamente embarcara para Gibraltar, sulcando o mar ao longo das costas de África, em direçcão a Alexandria do Egipto. Não fez referência à razão das suas contínuas andanças. Parecia nunca ter encontrado paz naquele incessante caminhar. Rainerio ouvia com atenção, sem deixar escapar uma só palavra.
As vossas histórias são incríveis, devíeis passá-las a escrito, comentou a dado ponto. Mas agora satisfazei a minha curiosidade: o vosso ofício é descobrir e recuperar as relíquias dos santos. A que prodígios haveis assistido em tais circunstâncias? Durante as minhas viagens encontrei muitas relíquias, confirmou o mercador. Mas isto não tem nada de extraordinário, podeis acreditar-me. Falais a sério? Ignazio inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos em cima da mesa. As relíquias são objectos comuns, sem qualidades milagrosas. Ossos, dentes, pedaços de peças de vestuário... Em qualquer cemitério se encontram estas mesmas coisas. Estai atento ao que dizeis, objectou o interlocutor batendo com o punho sobre a mesa. As relíquias são testemunho do sacrifício e da devoção dos santos. Os fiéis rezam na sua presença. O mercador leu-lhe no rosto o desdém, mas também sentimentos mais profundos e ameaçadores.
Talvez tenhais razão, disse calmamente. Mas nas minhas viagens descobri que por vezes os religiosos abusam do culto das relíquias, tornando-o semelhante à idolatria e à supersptição. Que palermice. Não podeis demonstrá-lo. Pelo contrário, fui testemunha disso. Em certos mosteiros, quando as relíquias não atendem as orações dos devotos, são lançadas para o meio das silvas ou queimadas. Vi praticar este rito mais de uma vez, com os meus próprios olhos, e asseguro-vos que se assemelha mais abruxaria do que a liturgia cristã. Impossível! Compreendo o vosso desdém, mas asseguro-vos que isso acontece. Rainerio fechou os olhos e fez o sinal da cruz. A culpa é destes tempos obscuros. Tempos de barbárie. A culpa é do homem, acrescentou Ignazio. É ele que traz a luz e a sombra. Em qualquer lugar e em qualquer tempo. Seguiu-se uma pausa. O abade levou o indicador à covinha do queixo. Parecia ansioso por atacar um certo assunto. Quando já não conseguia conter-se mais, exortou: muito bem, Ignazio, não quereis falar do vosso segredo? O mercador, que já esperava aquela pergunta, franziu o sobrolho e estudou a expressão perturbada do interlocutor. Falemos dele, respondeu. Dizei-me primeiro o que Maynulfo Silvacandida vos revelou a esse propósito. Não quero aborrecer-vos repetindo coisas que já sabeis. Sei pouco, para dizer a verdade. Rainerio enterrou-se na cadeira, com um brilho ambíguo no olhar. Maynulfo confidenciou-me que haveis escondido neste mosteiro qualquer coisa de muito precioso... Qualquer coisa que mais tarde ou mais cedo viríeis buscar». Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

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