jdact
A
pedra do exílio
Planalto
de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…)
Pensou portanto em retirar o elmo. Levou os dedos à nuca e manuseou-o até
soltar a correia que o fixava à sobreveste e depois retirou-o, arranhando-se no
rosto. À luz cinzenta do anoitecer, divisou o objecto a que se agarrara: as
rédeas de um cavalo morto. Por cima dele havia uma pilha de corpos envolvidos
em armaduras de metal, vestígios daqueles a quem ainda pouco antes chamara irmãos
de armas. Aquele macabro espectáculo estendia-se a perder de vista por todo o
campo, até ao sopé da colina. Cavaleiros, soldados de infantaria e besteiros,
destruídos por um devastador golpe de segadeira, jaziam no silêncio, no terreno
sulcado por rios escarlates. Maynard venceu o horror, mas não a vergonha, de
ver os despojos de tantos bravos companheiros à mercê dos corvos. Com um
movimento de raiva, atirou-se para a frente, libertando-se do volume dos cadáveres
que o bloqueavam, e depois virou-se de lado para respirar a plenos pulmões. A
chuva no rosto deu-lhe uma sensação de pureza, despertando em si a recordação
da irmã Eudeline, encerrada num convento para fugir às perversões do pai. Eudeline,
um nome de luz. Desejou voltar a vê-la, apertá-la contra si, como se disso
dependesse a sua salvação e a do mundo inteiro.
Uma
inesperada dor na perna esquerda chamou-lhe a atenção para o joelho, no qual se
encontrava cravada uma seta. Lembrou-se então de que fora atingido durante o
ataque, atirado para terra e dissolvido na refrega. Inclinou-se para analisar a
ferida, mas a ameaça de uma sombra levou-o a retirar instintivamente a mão
direita. Agarrou o pulso de um homem, mesmo a tempo de bloquear um golpe de misericórdia
(estilete utilizado para desferir o golpe de misericórdia a quem já caíra no
campo de batalha; a sua lâmina comprida e fina conseguia penetrar nas fendas
das armaduras). Por cima dele estava um soldado de infantaria inglês. Com uma
rápida torção do busto, Maynard arrancou uma ponta de lança do chão e espetou-lha
sob o maxilar. Deixou-o cair, agonizante, e retomou o fôlego. Tinha de sair
dali, pensou, apoiando-se na perna direita para se reerguer. Escorregou na
lama. Embora demasiado fraco para andar, jurou a si mesmo que não permaneceria
ali, nem que precisasse de rastejar como um verme. Já sabia a direcção a tomar.
Se o exército francês tivesse sido derrotado, as tropas de Eduardo III e do
Príncipe Negro teriam certamente ocupado as aldeias do Norte e a estrada ocidental
que ladeava o rio Mave. A única alternativa era dirigir-se para este, até à
antiga via romana que conduzia a Amiens, e continuar para sul. Uma empresa nada
fácil para um homem que não se mantinha de pé. No entanto, sempre era melhor do
que ficar naquele lugar à espera da morte.
Começou
a arrastar-se, agarrando-se ao que encontrasse pela frente. Corpos desfeitos,
armas fincadas no solo, arbustos ressequidos... Tudo servia, desde que o
ajudasse a avançar. Contudo, o imenso cansaço obrigou-o a parar de repente.
Apoiou as costas na roda de um carro semidestruído e soltou os espaldares e os
braçais, de modo a mover livremente os braços, levando por fim a mão ao joelho
para vigiar a ferida. A seta estava profundamente cravada na carne, e bastava
tocar-lhe para sentir espasmos lancinantes. Não seria capaz de a retirar
sozinho. Quando sentiu que recuperara as forças o suficiente, recomeçou a
mover-se. Pensava ter descansado o bastante para conseguir coxear, mas evitou
pôr-se de pé. O soldado inglês que o agredira não era decerto o único a
encontrar-se por ali. Deviam ser muitos os chacais a revistar entre os mortos.
Seria melhor arrastar-se na lama, a coberto da névoa que se erguia da terra». In
Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro,
Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.
Cortesia
de CdoAutor/JDACT