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O
mistério da Foz
«(…)
O viajante parou no vestíbulo, olhou em redor, inspecionando o local.
Demorou-se nos travejamentos do tecto, nas várias janelas poeirentas que amorteciam
a luz, num quadro que coloria a parede com uma movimentada cena de caça, na porta
remota ao fim do corredor. Olhou para todos os quadrantes e só depois disse o que
pretendia: precisamos de um quarto para esta noite e a próxima. Quero o melhor que
tenhas, exigiu. O preço é o que está ali?, perguntou, indicando com um esticar do
queixo a pequena tabuleta de madeira que se erguia a meio do balcão, logo a seguir
à campainha. Sátiro Costa assentiu timidamente com a cabeça. Ainda pensou fazer
mais barato, mas o recém-chegado não lhe deu tempo para isso. Muito bem. Arranja-nos
água quente para nos lavarmos. Costa obedeceu de pronto e ordenou para o cimo das
escadas, elevando a voz: Maria, leva água quente para o quarto grande. Depressa!
Os viajantes iam-se dirigindo agora para a sala de jantar e ao vê-los entrar naquele
espaço mortiço o estalajadeiro sentiu-se tomado de uma constrangedora vergonha.
A divisão parecia-lhe demasiado escura, boa para marinheiros e outras aves de arribação
mas imprópria para acolher gente daquela estirpe. Onde anda este rapaz que se esqueceu
das luzes?, protestou, a meia-voz.
Ele próprio
riscou pressurosamente um fósforo e acendeu algumas velas. Primeiro, claro está,
as dos dois castiçais de parede, com espelhos reflectores. Depois algumas
outras. A luz amarelada e ainda hesitante revelou uma divisão ampla cheia de mesas
quadrangulares. A criada de touca e avental branco que as limpava parou, intrigada,
de pano na mão e expressão respeitosa. Ao fundo, semiescondida atrás da parede
que separava a sala da cozinha, a cozinheira negra afadigava-se em redor do panelão
da sopa. Grandes rolos de vapor escapavam-se pela chaminé e o lume do fogão de alvenaria
fazia rebrilhar, em tons avermelhados, os vários utensílios de cobre pendurados
nas paredes bem como os pratos e os frascos, que enchiam as prateleiras. No
lado oposto da sala, um grande fole pendia de uma escápula, na parede, e junto a
ele uma lareira apagada abria a sua bocarra enegrecida numa promessa de futuros
confortos de Inverno.
O viajante
parecia agradado com o que via e perguntou, dirigindo-se ao estalajadeiro: o que
tens para a ceia? Borrego, senhor. Borrego, broa, uma sopa de couve acabadinha de
fazer e sobremesa, claro está. Doces aqui do Porto. Ah, acrescentou com o indicador
bem espetado no ar, e bom vinho do Douro. Muito bem, ceamos daqui por duas
horas. Arranja-nos uma mesa à parte... Não queremos ser incomodados. Os hóspedes
subiram a escada, à frente do rapaz que ia carregando, esforçadamente, as bagagens
para cima. Voltaram cerca de duas horas depois e instalaram-se numa mesa afastada,
posta expressamente para eles numa ponta da divisão. O estalajadeiro mandara acender
todas as velas e a sala de jantar resplandecia como nas melhores horas de antigo
fausto da sua estalagem. Pusera-se uma noite clara e silenciosa, igual às dos últimos
dias, e lá fora, ao fundo dos rochedos e da areia, o mar adormecia numa placidez
melancólica.
Maria,
apaziguada pela presença daqueles desconhecidos de bom trato, moderara os seus ímpetos
e serviu a sopa com um cuidado extremo para não entornar as tigelas fumegantes.
Os viajantes comiam devagar, com modos pausados, mas percebia-se que a jovem senhora
estava tensa. De tempos a tempos lançava olhares nervosos, temerosos, para a janela
mais próxima. O homem, pelo contrário, parecia tranquilo e seguro de si. Falava
muito, fazia gestos veementes, abrindo os braços e explicando qualquer coisa ou
desculpando-se de alguma falta. Às vezes tomava a mão da senhora e beijava-a com
ternura e enlevo. Os seus olhos azuis brilhavam, então, com uma luz entusiasmada
e pareciam maiores quando fixavam os olhos dela. À distância, Sátiro Costa ia observando
a cena e fervendo num lume de muitas curiosidades. Que gente seria aquela que ali
lhe surgira envolta numa nuvem de pó e de mistério? De onde vinham e para onde
iriam? Por que razão estavam na sua estalagem e que laço uniria aqueles dois? As
perguntas e as conjecturas vinham-lhe sem parar ao cérebro e desinquietavam o seu
temperamento efeminado. Decidiu ser ele mesmo a servir a carne, para poder apanhar
qualquer coisa que lhe revelasse uma ponta daquele enigma. Na altura própria, aproximou-se
da mesa com uma travessa bem fornecida de borrego, couves, castanhas e batata. A
jovem mulher olhava de novo, apreensivamente, para a janela. O homem, como se lhe
lesse a alma, tocava-lhe meigamente na mão e fazia um sorriso prazenteiro e confiante
que encorajava o sorriso vago e desfalecido dela». In João Pedro Marques, O Estranho
Caso de Sebastião Moncada, Porto Editora, 2014, ISBN 978-972-004-495-2.
Cortesia
de PEditora/JDACT