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Juiz
implacável
«(…)
Nos tribunais há juízes benevolentes, outros implacáveis e, alguns, tão imprevisíveis
que parecem uma roleta russa. Aquela era implacável. Andava sempre vistosa, de
saltos altos e cheia de bijutaria a chocalhar. A maquilhagem bem delineada e o
cabelo loiro platinado compunham o resto. Dentro da sala de audiências era
durona. Às vezes, até exagerava. Foi este o retrato que uma revista fez dela,
em acção, em plena sala de tribunal. Fo-da-…, disse, a meia-voz, o
condenado. O arguido estava em liberdade condicional quando foi apanhado com
uns gramas de haxixe e, por isso, juntando as duas penas (uma antiga e, agora,
esta nossa pena), foi condenado a sete anos de prisão. Venha o próximo. Tem
vinte e cinco anos, ar adolescente, toxicodependência e uns furtos no cadastro.
Está cá com uma carreira..., comenta a juíza, sempre tu cá, tu lá. com
os réus. Vê lá se não voltas a tocar nessa porcaria das drogas!
Eu
acho isto giro, explicou a juíza. É tudo mais próximo da vida e do quotidiano
das pessoas. Em termos humanos é muito rico! Ela gosta. E prende. Prendo
muito, diz com o seu belo sorriso, um rasto de mimo na voz. Quando aqui
cheguei, comecei a prender alguns que eu achava que andavam mal soltos.
Porquê? Para proteger a sociedade. E se a prisão não recuperar ninguém? Com
a criminalidade que temos não podemos estar com princípios utópicos de
reabilitação, diz, à despedida. Uma vez, em pleno Agosto, recebeu um
processo onde teria de proceder apenas a demarches
de mero expediente. Porém, não resistiu e decretou a prisão preventiva. Deitei-me
de manhã estoirada, mas valeu a pena, explicou, orgulhosa, aos jornais. Transtornou-me
ler os depoimentos das vítimas e foi muito por causa delas que tomei a decisão;
merecem tudo. O povo aplaudiu mas, no meio judicial, ficou tudo estarrecido, como
é que a juíza, que ainda por cima estava de turno e, por isso, nem sequer
conhecia o processo, avançara assim de repente para um passo daqueles? Acabou
por ser a própria juíza, numa entrevista que deu à imprensa, a explicar melhor.
Juíza: os crimes sexuais chocam-me
muito e para mim é pior ter um alegado pedófilo em liberdade do que um ladrão
ou traficante. Jornalista: já
tinha uma convicção muito marcada sobre a inocência ou culpa dos arguidos? Juíza: a partir do momento em que li
o despacho de pronúncia posso dizer que tenho a minha convicção. Jornalista: que é qual? Juíza: isso agora não posso dizer,
não interessa. Só interessará a convicção dos juízes que vão fazer o julgamento
deste processo. Jornalista: mas
decidiu que devem aguardar em prisão preventiva..., pode-se concluir que...
Juíza: sim, porque os considero
perigosos.
Os
comentários que circularam pela internet tentaram explicar como se chega,
rapidamente, a essa conclusão. Lê-se num dia um processo de dezenas (centenas?)
de volumes, põe-se no shaker com as
visões pessoais sobre a gravidade de um crime, mais a interpretação pessoal do
que se foi lendo, ouvindo e vendo na comunicação social, agita-se e já está:
culpado ou inocente. No dia seguinte, a prisão preventiva acabou por ser
anulada) por um outro juiz. Mais tarde, a 1uíza foi punida disciplinarmente por
ter falado tanto na imprensa. Entretanto, foi promovida a juíza desembargadora,
estando agora mais à vontade para prender.
Sob
pressão
Aquela
juíza, embora às vezes se excedesse, sempre fora corajosa. Empolgava-se quando
a Justiça se metia em trapalhadas, gritava com a incompetência e desanimava
quando os bandidos saíam a rir. Esteve uma década na instrução criminal, um tribunal
de alta tensão onde é preciso decidir tudo em cima do acontecimento. As
decisões exigem cabeça fria e excelente fundamentação jurídica. Não é tarefa
para qualquer um. Tanto se enfrenta um homicida a sangue frio, um drogado de
meia tigela, um pedófilo, quanto senhores do colarinho branco ou violadores.
Esses eram os mais difíceis. Houve um, por exemplo, que se manteve sempre à
frente dela, em pose de desafio. Nem o boné queria tirar. Depois recusou-se a falar.
Quando disse alguma coisa, foi para a ameaçar de que lhe faria o mesmo. A
acusação era suficientemente explícita: arrastaram Isabel para uma carrinha
abandonada e obrigaram-na a despir-se; perante a sua recusa inicial,
bateram-lhe e rasgaram-lhe a roupa; o arguido Carlos deitou-se sobre o seu corpo,
introduziu-lhe o pénis na vagina e manteve relações sexuais até ejacular; o
mesmo fez, de seguida, o arguido Pedro. Isabel não sabe precisar quantas vezes
foi repetidamente violada; enquanto os arguidos Carlos e Pedro mantinham
relações sexuais com ela, gritavam-lhe vais ter um filho de um preto. De
seguida os arguidos pretenderam obrigá-la a manter relações de sexo com o seu
irmão André, tendo-o obrigado a baixar as calças, só não o conseguindo por ele
se recusar terminantemente, pelo que novamente lhe bateram e o esfaquearam. Isabel nunca antes tinha mantido relações
sexuais. Mandou-os em prisão preventiva, mas durante semanas a fio não se
conseguiu esquecer daquela história». In Sofia Pinto Coelho, As Extraordinárias
Aventuras da Justiça Portuguesa, Histórias insólidas de juízes, advogados,
procuradores e de todos nós, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009, ISBN
978-989-626-186-3.
Cortesia
de ELivros/JDACT