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Arredores
de Colónia. 1430
«(…)
Arrastou a arca das mantas e colocou-a sob o buraco. Subiu por ela e tentou
alcançar o soalho do segundo piso. Deu um salto e a madeira a que tentou
firmar-se com as mãos cedeu. Rodou até uma labareda junto à mesa. caído no
chão, um estrondo fê-lo erguer o olhar. O tecto começara a fender-se. Uma viga
caiu-lhe em cima, conquanto tenha conseguido esquivar-se dela. E, ao fazê-lo,
colocou-se justamente no lugar onde caiu a seguinte. O golpe não foi tão forte
como seria de esperar, mas uma queimadura atravessou-lhe as costas e fê-lo
gritar, com o rasgão. Recobrou e voltou a subir para a arca. Quando se ergueu totalmente
para ganhar impulso, a pele das costas retesou-se como a de um tambor e caiu outra
vez dobrado aos pés do baú. Acocorou-se para se erguer de novo. No entanto, uma
mão agarrou o que lhe festava de roupa e começou a puxar por ele. Não
compreendia nada. Apenas sabia que a esposa estava lá em cima e que ainda a não
tinha salvado. Tentou lutar com as poucas forças que lhe restavam.
Sai
daqui, louco! Já não podes fazer nada! Os seus membros não lhe respondiam.
Novas mãos ajudaram as anteriores nessa tarefa. Via que estava cada vez mais
perto da saída e que nada podia fazer para o evitar. Um novo estrondo obrigou-o
a erguer os olhos. O piso de cima caía em pedaços. Voltou a defender-se com
pontapés, com safanões para o ar, com mordidelas. Um dos vizinhos aplicou-lhe
um forte soco no queixo. Tudo na sua mente se foi dissipando e, quase
inconsciente, derrotado, deixou-se levar. Os dois vizinhos estenderam-no no
chão, onde a filha fora deitada um momento antes. Em poucos segundos, com o
reflexo das chamas a encher-lhe as pupilas, pôde ver como o telhado da sua casa
desabava por completo.
Permaneceu
imóvel a observar o fogo, abrindo e fechando os olhos avermelhados, como se
ainda esperasse despertar daquele terrível pesadelo. Os ruídos da demolição
tornavam-se insuportáveis. Já não sobrava quase nada do que fora o seu lar.
Perdera absolutamente tudo. Sentiu uma presença próxima. Uma das vizinhas
havia-se aproximado com a filha dele nos braços. Sem dizer nada, depositou-lha
no regaço. Só então reagiu. Olhou para a filha. Não podia cair, não podia afundar-se
na tristeza incomensurável que lhe nascia muito de dentro. Abraçou-a
fortemente, protector. A pequena não chorava; o seu olhar parecia ter ficado
parado em algum lugar das recordações. Encostou o rosto enegrecido contra o
peito do pai e, então sim, as primeiras lágrimas negras sulcaram lentamente a
sua face suave, arrastando a fuligem. Alguma coisa começou a rasgar-lhe as
costas. Uma dor pungente parecia arrancar-lhe a pele. Levou a mão atrás para
perceber do que se tratava. Era o rasto que o fogo tinha deixado nele. Sentiu como
a queimadura se expandia pelo corpo, abrasando-o por inteiro. Rendido à dor, as
lágrimas começaram também a humedecer-lhe o rosto, juntando-se às da sua filha.
Teve a inconfundível certeza de que, a partir daquele momento, só se tinham um
ao outro.
Durante
semanas, o pequeno mutilado errou pelos bosques próximos do rio, evitando
aproximar-se dos lugares habitados. Sobreviveu à base de insectos e de raízes.
A simples visão de um grupo de pessoas, ou das suas vozes a ecoar por perto,
causava-lhe pânico. Mas, finalmente, teve de claudicar». In Eduardo Roca, A Oficina dos
Livros Proibidos, O Conhecimento pode Mudar o Mundo, 2011, tradução de Óscar
Mascarenhas, Marcador Editora, 2013, ISBN 978-989-754-015-8.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT