quarta-feira, 25 de maio de 2016

A Musa de Camões Maria Helena Ventura. «… porém sabíamos como mal disfarçava a dor da lembrança dele, da penúria dele, a posição mais submissa que ela mesma era forçada a sustentar, perante El Rei, apesar da dignidade com que o enfrentava»

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O Pulsar Lento da Vida
«(…) Sem bem descobrir porquê sofreu meses no escuro de uma cela, onde ninguém podia ouvir-lhe os queixumes. Amenizou o sofrimento continuando a verter palavras como lágrimas, os pés acorrentados ao capricho das marés. Só tinha por companhia a desolação do vento a entrar pela abertura dos postigos donde expedia desabafos, a ver a quem pertenciam as vozes que poucas vezes se acercavam das paredes do forte. Sentia-se vergado sob o peso da infelicidade, porém até na ausência, no bico da pena ligeira, o amor esteve presente. A Senhora Infanta alimentava a esperança de vê-lo livre e com essa liberdade igualarem-se num só querer, longe do fausto dos paços. De pouca valia seriam os móveis raros, os tecidos do Oriente, o delicado ornamento das baixelas na majestosa mansão, se a alma se embrulhasse na solidão e lhe negassem a luz do afecto. Mas o tempo foi-se arrastando, as coisas que muito queriam alcançar também não se quedavam imunes às mudanças. Quando a liberdade surgiu foi passageira, para ele um pássaro na mira da espingarda, forçado a voar ainda para mais longe. Cumpria-se o destino da Índia, o quase fim de mundo conhecido pelos portugueses. Como garantiam os que mais batalharam para o tirar da pátria, só tão longe estariam a salvo a honra e a dignidade ofendidas.
Nem a ela a mudança bafejou. Emudecida, em extremo refúgio no mundo fechado dos livros, ia afogando a saudade. Num tempo de soturnas vozes a congeminarem heresias, qualquer cisco de atrevimento, de ilícito desejo, bastaria para incentivar o castigo. A Infanta não se manifestava, muito carecendo do nosso apoio para desanuviar parte das mágoas que era obrigada a calar, com receio de ver o poeta sujeito ao sofrimento da fogueira. Andávamos por perto, tristes da sorte que lhe vinha, sempre com o quinhão de consolo que pudesse fazê-la acreditar no que desejava ouvir. O olhar acusava ainda a natural altivez, mas não raro esboçava a desesperança que lhe roubava a energia. O trabalho intelectual dava-lhe entrada numa esfera de menores enganos, porém sabíamos como mal disfarçava a dor da lembrança dele, da penúria dele, a posição mais submissa que ela mesma era forçada a sustentar, perante El Rei, apesar da dignidade com que o enfrentava.
Antes de dormir lá ia eu pé ante pé, até à sua câmara, as aias por ali a destrançarem-lhe o cabelo, a mudarem-lhe o fato. Oferecia os meus préstimos, já que mo tinha consentido, às vezes ficava mesmo depois da camareira de confiança ir embora. Dei com ela muitas noites à janela, com suas vestes brancas tapadas pelo cabelo quase até à cintura, a olhar o céu pontilhado de luzes, prolongado no outro céu longínquo, sob o qual o poeta havia de invocar a lira para sentir-se mais perto da pátria. Sob o manto púrpura da noite estendida sobre os telhados, media melhor a amplitude do desassossego, a nudez das urdiduras que a mantinham quase prisioneira no seu amado país. Passava, então, em revista a vida que se perdia por culpa de outros, por causa de outras vidas colocadas à sua frente. Não era por bem que a família real, a sua própria família, a queria perto... Os laços de sangue com os monarcas não lhe faziam menor a orfandade. Nem o afecto que lhe tinham era tão limpo que os deixasse olvidar a fazenda a que tinha direito. O medo de a perderem mais ao dote que levaria consigo, era a prioridade do trabalho de espionagem aturada que até na sua moradia se manifestava, com vigilância cerrada a todos os seus movimentos. Agora mais enxergava o muito que manobravam para a manter solteira, v'ulnerável, dependente de razões de estado para decidir o próprio destino, quando a natureza a tinha coberto de gravidade e siso..., de mansidão e graça...
Todos os bens morais e sabedoria lhe acrescentavam a condição de nascimento que lhe dava direito a uma riqueza invejável. Jeronymo Osório, futuro bispo de Silves, costumava falar a Sua Alteza da força interior, da inteligência que lhe notava desde criança. O embaixador castelhano Sancho Córdova vincava-lhe o bom senso, o carácter, a cultura. Suas damas admiravam-lhe a bondade, o acerto nas falas e na acção. Como não havia de doer a ironia de não poder traçar, tão dotada Senhoria, um destino a seu contento? Não era mais que uma peça de xadrez jogada pelo tio e cunhado, ainda na Alemanha, pelo irmão e pai adoptivo, Por alguns nobres simpatizantes da causa da rainha, tia e cunhada, também... Não a consolava saber que sempre as razões de estado se tinham sobreposto às necessidades individuais. Bastava ver os exemplos, na família: o pai desfizera o casamento do próprio filho, o herdeiro, por entender que era mais conveniente casar-se ele com a noiva, depois mãe de Sua Senhoria; El Rei, seu irmão, esquecido do desgosto que o rei Manuel I lhe causara tomando a sua prometida, arranjara o enlace da própria filha com Filipe de Espanha, antes indicado para a irmã. Grave era ter nascido no meio de interesses contrários ao seu legítimo direito à felicidade. Como podia ela livrar-se dessa teia, concretizar o seu desejo de paz familiar, se nem sua mãe, viúva do Venturoso, conseguira escapar?» In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT