sexta-feira, 27 de maio de 2016

Goa ou O Guardador da Aurora. Richard Zimler. «Fora o meu pai que me dissera que os dominicanos e jesuítas tinham um apetite sôfrego pela identidade de todos os que eram como nós. Mais cedo ou mais tarde, os padres haveriam de tentar arrancar-me os nomes deles pela tortura»

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«Prenderam-me em Novembro de 1591 e, durante quase onze meses, não falei a mais ninguém para além do guarda prisional. Nem fui informado das acusações que pendiam sobre mim nem autorizado a ler fosse o que fosse, e a minha janela, uma fenda mesquinha na pedra nua, estava tão alta que não me permitia espreitar para a cidade lá em baixo. A esperança agarrava-se às recordações de Tejal, e por vezes, também, ao tamborilar da chuva, a qual me lembrava que havia um mundo onde os meus carcereiros não tinham poder. Uma vez, durante uma tempestade, pus-me a lamber umas gotas que escorriam pela parede. Souberam-me ao Riacho do Moinho e, por uns instantes, os meus pensamentos chapinharam em toda a minha liberdade de criança, mas muitas vezes penso que acabaram por me trair nessa mesma noite, Deus foi-me roubado, e, ao acordar, senti-me mais sozinho do que já alguma vez estivera, expulso do mundo sobre o qual Ele sempre velara. Nunca mais haveria de sentir os dedos dos meus pés afundarem-se na terra vermelha dos arrozais ou saber se Tejal dera à luz um rapaz ou uma menina.
Silenciosamente, pedi perdão ao meu pai por não fazer a vida melhor que ele desejara para mim, e fui buscar o precioso instrumento feito de ferrugem e ponta acerada que escondera no fundo do penico havia umas semanas. Farejando-lhe o odor sagrado de desígnio metálico, confiante na derrota como a minha última amiga, sulquei com ele um braço e depois o outro. O meu retrato final havia de ser quente e desenhado no meu próprio sangue como se impunha. Percebi que era um homem amaldiçoado quando nem sequer, apesar das minhas preces, conseguia afundar o prego o suficiente para fazer o milagre de que precisava. Mesmo assim, sangrei bastante, e o rio que fica além do sahrat levou-me para longe na sua corrente. Pousando a cabeça na verdade das suas águas, sonhei com um horizonte de pinheiros e cedros muito ao longe a ocidente, nas margens do rio Jordão.
Tejal seria informada da minha morre; agora ficaria livre para casar com outro homem. Isso valia bem o preço que eu tinha de pagar. Acordei sobressaltado e dei com um padre que nunca tinha visto antes a atar-me os braços, suando, com umas cordas grosseiras. Pedi-lhe que me deixasse em paz, mas ele continuou o seu trabalho e atirou-me para o catre com um resmungo de repugnância. Tentando impedir a queda, puxei-lhe pelo rosário, e as contas espalharam-se pelo chão. Mulato fi de pu…!, gritou-me. Ainda hás-de confessar! Não, pensei, da voz da criança que já fora. Mesmo não sendo quem já fui, a ninha alma ainda tem cola suficiente para não me deixar assim tão facilmente. Dois guardas puseram-se de quatro, homens transformados pela encantação do meu desprezo em ursos que gatinhavam. Por qualquer razão que não descortino, comecei a pintar listas de tigre na cara com sangue dos meus pulsos. Pouco depois, lembrei-me da alcunha que Wadi me dera e pensei: sim, tenho de me tornar noutra espécie de ser, um ser feroz; senão ponho-me a dizer o nome de outras pessoas e condeno-as a um destino igual ao meu.
Fora o meu pai que me dissera que os dominicanos e jesuítas tinham um apetite sôfrego pela identidade de todos os que eram como nós. Mais cedo ou mais tarde, os padres haveriam de tentar arrancar-me os nomes deles pela tortura. Resvalei para um sono febril. As minhas recordações eram agulhas, e todo o meu passado estava eriçado de espinhos e envenenado, uma infância torcida e no fim morta pelo destino. Na manhã seguinte, logo após o repicar da hora prima, os guardas trouxeram para a minha cela um velho com pele cor de canela e cabelo branco eriçado, na manifesta esperança de que a sua companhia me impedisse de voltar a abrir as feridas; a Igreja não abdicava facilmente do prazer de decidir como e quando eu havia de ser morto. Os pés do velho eram dois caranguejos estorricados. Afastei os olhos, pois a compaixão é por eles que vem, e não queria que ele percebesse que eu ainda podia sentir essa emoção inútil. Desabou no chão quando o meu guarda habitual, um lisboeta com olhos verdes mortiços e o hálito fétido desses homens que andam sempre a tentar deitar a mão a um pouco de bebida, retirou os braços de sob os ombros dele. A cabeça do prisioneiro descaiu-lhe para trás e para o lado, e os olhos fecharam-se-lhe.
O Analfabeto, como eu chamava ao guarda, disse-me que o meu hóspede era um jaina acusado de feitiçaria. os torcionários tinham-lhe coberto os pés com óleo de coco, assando-os depois como num churrasco. Os olhos pretos metálicos do velho abriram-se por um momento, e olhou para mim como se compartilhássemos um segredo condenatório. O que fosse, não fazia ideia. Talvez só estivesse à espera de que eu fosse amável com ele na sua infelicidade. A passos largos triunfantes, o Analfabeto dirigiu-se para a saída da cela, fechou com estrondo a porta interior e ajoelhou-se, mostrando-me a cara bulbosa recortada pela grelha. Lançou-me um sorriso escarninho. Usaram carvão, disse. O carvão queima muito mais do que a lenha. Até o fogo trabalha para ela, pensei. Quando o guarda se foi embora, embebi a camisa no jarro de água. Envolvi com ela os pés do jaina, que escaldavam nas minhas mãos. Às tantas, até os sonhos dele estavam em chamas. Nunca mais conseguiria andar sem ajuda». In Richard Zimler, Goa ou O Guardador da Aurora, 2005, Gótica 2000, Difel, 2005, ISBN 978-972-792-145-0.

Cortesia de Gótica/Difel/JDACT