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Tráfico e Tráficos. Os navios negreiros não param de passar
«(…) Aliás, a maioria desses bens eram bens de prestígio e contribuíram
para o reforço do poder ou para a renovação das elites linhageiras, na medida
em que estas se mostravam capazes, em maior ou menor grau, de se adaptarem aos
princípios da economia de mercado. Talvez agora compreendamos melhor o amargo
testemunho com que abrimos o texto desta secção. O velho africano, reflectindo
sobre os malefícios do tráfico de escravos, recriminava não apenas os brancos mas
também as elites locais, a que ele próprio pertencia, por não terem sabido
resistir à novidade das mercadorias europeias. E o que mais o chocava era a
instabilidade e a insegurança que a arbitrariedade da justiça e os conflitos
entre os Estados tinham introduzido num mundo que provavelmente nunca existira,
mas onde, segundo ele, reinava a ordem intemporal e a autoridade consentida.
Os tráficos orientais
O volume e a violência do tráfico atlântico, a que a campanha
abolicionista do século XIX ajudou a dar a ver a sua verdadeira dimensão de
horror, fizeram esquecer que os comerciantes muçulmanos tinham iniciado, vários
séculos antes, o seu tráfico africano de escravos, transportando um número de
escravizados ainda hoje difícil de contabilizar. A questão dos tráficos
orientais continua, aliás, a ser polémica, mesmo nos nossos dias, não
faltando quem afirme que chamar a atenção para outras rotas é uma forma de
desviar a atenção do comércio transatlântico, como se não fosse possível tratar
todas as formas de tráfico com o mesmo esforço de isenção ou com a mesma
indignação. Os chamados tráficos orientais iniciaram-se no século VII,
com a formação do Império Árabe. A lei islâmica não permitia a escravidão de
muçulmanos, mas aceitava a dos infiéis, o que levou a que se estabelecesse uma
rede de abastecimento que incluía a população negra da África subsariana mas
também as populações brancas dos países eslavos e do Cáucaso e de outras regiões
fronteiriças do Império, como os reinos cristãos do Al-Andalus (Península
Ibérica). Muhammad Ibn Hawqa, um geógrafo muçulmano de origem turca que viajou
no século X pelo Ocidente, registou nos seus cadernos que o artigo de
exportação mais conhecido do Al-Andalus eram os escravos, rapazes e raparigas
trazidos de França (condados catalães) e da Galiza (reino de Leão) que eram
vendidos em leilões públicos em mercados especializados (ma'rid), do tipo dos existentes nas principais cidades do Império
Muçulmano.
Nestes pontos de venda de escravos iriam surgir, com uma frequência
cada vez maior, indivíduos negros, ditos genericamente do Sudão. Era o resultado
do tráfico transariano, desenvolvido pelos muçulmanos após o domínio político
de todo o Norte de África e que lhes dava acesso a mercados africanos que iam,
na África Ocidental, até ao Norte da actual Nigéria, e, na Oriental, até, à
Tanzânia. A travessia do deserto, que podia demorar cerca de três meses, através
da complexa rede de rotas caravaneiras que foram sendo criadas, era, como se
calcula, dura e perigosa, sobretudo para grandes grupos, exigindo experiência e
cálculos rigorosos sobre a duração das etapas, para aproveitar os raros pontos
de água existentes nos vários percursos. Ainda assim, a mortalidade era muito
elevada, chegando a ultrapassar os valores que se vão registar na fatídica
travessia do Atlântico. Pelas arriscadas pistas que cruzavam o Sara, os comerciantes
não traziam apenas escravos mas também ouro, pimenta da Guiné e marfim. O
destino eram os principais mercados mediterrânicos do Norte de África: para
leste, as cidades egípcias, como Alexandria e o Cairo; mais para ocidente,
Gadamés, Cairuão, Tunes, Marráquexe ou Fez.
Seria através da intercepção de algumas destas caravanas vindas da região
subsariana que os portugueses obtiveram os primeiros carregamentos de escravos
negros desembarcados em Portugal, e era também essa via que abastecia a
feitoria de Arguim (na actual Mauritânia), onde o infante Henrique mandou
levantar, em 1455, uma fortaleza que só ficaria concluída já após a sua morte. Além
das rotas transarianas, comerciantes muçulmanos e de outras origens abriram
também uma rota marítima para o transporte de escravos da África Oriental,
através do oceano Índico e do mar Vermelho. Estes escravos provinham de uma
vasta área da África Centro-Oriental que compreendia o Alto Congo e a região
dos Grandes Lagos e ia até à bacia do rio Zambeze, sendo embarcados, em geral,
a partir de um grande entreposto situado na ilha de Zanzibar. Embora o objectivo
fosse sobretudo o abastecimento da Arábia com mão de obra escrava, a verdade é
que, desde o século VIII, surgem africanos escravizados em todo o arco do
oceano Índico e até para lá do estreito de Malaca. No final do século IX, já há
notícia de escravos negros na ilha de Java e uma inscrição um pouco posterior
dá conta de uma oferta de cativos da mesma origem, feita por um rei javanês, ao
imperador da China.
No mundo muçulmano, eram destinadas aos escravos africanos as tarefas
mais diversas, que estavam longe de se limitarem, como faz parte de algum
imaginário erótico-literário, ao serviço, nos haréns dos sultões, como
odaliscas, concubinas ou eunucos. Eram também recrutados como soldados: por
exemplo, em Marrocos, desde os Almorávidas, havia temidos corpos do exército
formados por escravos e o mesmo acontecia em Bagdad, na época dos grandes
califas abássidas. Mas havia também milhares de escravos africanos em trabalhos
mais penosos: na exploração das minas de sal, de alúmen e de cobre do deserto
do Sara; nas grandes explorações agrícolas em vários pontos do império, como
era o caso das planícies pantanosas do Tigre e do Eufrates; nos estaleiros da
construção naval ou como remadores nas galés de combate». In Arlindo Manuel Caldeira,
Escravos e Traficantes no império português, O Comércio Negreiro no Atlântico
durante os séculos XV a XIX, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-626-478-9.
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