quinta-feira, 26 de maio de 2016

O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Jacques le Goff. «Entre estes encontra-se Pedro, que se alimenta de rebentos novos das plantas e construiu para si uma “casinha” com cascas de árvore»

jdact

O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…) Qual foi a realidade da floresta no Ocidente medieval? Para Gaston Roupnel, na sua célebre Histoire de la champagne française, a floresta foi para o homem, do Neolítico até ao fim da Idade Média, ao mesmo tempo o espaço indispensável que prolongava e completava os seus campos e o lugar dos seus temores lendários: neste limiar sagrado que tudo protegia, o desbravador primitivo suspendeu uma vez por todas as suas campanhas profanas. Charles Higounet redigiu o inventário e o mapa das florestas da alta Idade Média, época que conheceu, de 500 a 1200, mais ou menos, uma fase climática quente e, por conseguinte, um retorno ofensivo da floresta. Entre estas florestas europeias, Higounet distingue a floresta das Ardenas, que desde o tempo dos Celtas era a floresta por excelência. Regista o aparecimento, ao lado do italiano, do castelhano [e do português] selva, que continua o termo latino silva, e do germânico wald, do termo forestis ou foresta, que dará forêt em francês, [floresta, em português], Forst em alemão, forest em inglês. A mais antiga atestação conhecida do termo associa por outro lado a ideia de floresta à ideia de solidão. Trata-se de um diploma de Sigeberto III, de 648, para a abadia de Stavelot-Malmédy: na nossa floresta chamada Ardenas, vasta solidão onde se reproduzem os animais selvagens.
A palavra deriva sem dúvida da expressão silva forestis, uma selva que depende do tribunal, forum, do rei. Designa na sua origem uma reserva de caça; tem um significado jurídico. Assim, os homens da segunda função indo-europeia, os guerreiros, os bellatores, os homens da força física, tentaram apropriar-se da floresta durante a Idade Média e fazer dela o seu terreno de caça. Mas tiveram de dividi-la com os homens da primeira função, os oratores, os quais, por via da apanha, da lenha, do carvão, do mel., etc., fizeram dela um território suplementar da actividade económica. Mas todos, na realidade, foram para lá sobretudo para se marginalizarem, para se comportarem como homens da natureza, fugindo ao mundo da cultura em todos os significados da palavra.
Para voltarmos à floresta material do Ocidente medieval, sublinhemos com Charles Higounet que ela serviu de fronteira, de refúgio para os cultos pagãos, para os eremitas que vieram procurar lá, o deserto (eremum), para os vencidos e os marginalizados: servos fugitivos, assassinos, aventureiros, malfeitores; mas também que ela foi útil, preciosa, reserva de caça, terreno de apanha, inclusivamente para o mel, com o qual se produzia a bebida mais espalhada em toda a Europa, e a cera para iluminar as igrejas, lugar de extracção da madeira, da indústria vidreira e da metalurgia, campo de pastagem para os animais domésticos, em particular para os porcos. Marc Bloch tinha já assinalado a dupla face da floresta medieval, que cobria espaços muito maiores que hoje, com manchas muito salpicadas de clareiras. Ela era ao mesmo tempo repulsiva e desejável: sob tantos aspectos tão pouco hospitaleira, a floresta não era contudo de modo algum inútil. Mas evocava os textos antigos que falam da opacidade, da densidade das florestas.
Em Les caractères originaux de l’Histoire rurale française, ainda Bloch, depois de ter sublinhado que a floresta medieval estava longe de estar não aproveitada e vazia de homens, evoca a chusma pouco tranquilizadora dos trabalhadores da floresta: todo um mundo de boisilleurs muitas vezes suspeito aos sedentários percorria-a ou nela construía as suas cabanas: caçadores, carvoeiros. artífices, pesquisadores de mel e de cera selvagens (os bigres dos textos antigos), fabricantes de cinzas que eram empregadas na indústria do vidro ou do sabão, tiradores de cascas de árvores que serviam para curtir os couros ou também para entrançar cordas. Eis os habitantes deste deserto, vagabundos muitas vezes suspeitos aos sedentários! Entre os inúmeros documentos sobre a floresta medieval. fixemo-nos num grupo de três publicado recentemente. O primeiro é de um beneditino, Lambert Hersfeld, que, nos seus Anais, com referência a Agosto de 1073, conta um episódio da luta do imperador Henrique IV contra os Saxões. Evoca a densa floresta germânica, imensa e vazia (vastíssima), dificilmente penetrável, não hospitaleira, porquanto Henrique e os seus companheiros por pouco não morreram de fome lá dentro, assustadora, menos para um caçador habituado a orientar-se no segredo das florestas. O segundo documento é um texto hagiográfico tirado da Vida de S. Bernardo de Tiron, escrita por Gaufredus Grossus no início do século XII: ele descreve as vastas solidões que se encontram nos confins do Maine e da Bretanha, como um segundo Egipto povoado de uma multidão de eremitas. Entre estes encontra-se Pedro, que se alimenta de rebentos novos das plantas e construiu para si uma casinha com cascas de árvore.
Quando Bernardo e alguns outros vão ter com ele, ele vai com os seus cestos para a floresta que rodeava por todos os lados a área da sua morada, apanha rapidamente vergônteas de espinhos e de silvas, colhe os frutos das aveleiras e outras árvores selvagens. Por fim, encontra na cavidade de um tronco um enxame de abelhas com cera e mel em tal quantidade que se julgaria terem estas riquezas saído do próprio corno da abundância. Aqui sente-se o eco da concepção paradisíaca do deserto, herdada da literatura monástica da alta Idade Média. O terceiro texto é célebre: Sugero conta nele como, para construir a armação da basílica de Saint-Denis, foi percorrer, contra a opinião geral, a floresta de Yveline e, através dos cortes, das manchas de sombra, das florestas de silvas, encontrou árvores suficientemente grossas e grandes para fazer doze traves. Vemos aqui em acção os utilizadores da floresta, que a reduzem ao estado de bosque para cortar madeira e nela vêem apenas uma fonte de matérias-primas». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.

Cortesia de E70/JDACT