jdact
O
Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
«(…)
Qual foi a realidade da floresta no Ocidente medieval? Para Gaston Roupnel, na sua
célebre Histoire de la champagne française, a floresta foi para o homem,
do Neolítico até ao fim da Idade Média, ao mesmo tempo o espaço indispensável que
prolongava e completava os seus campos e o lugar dos seus temores lendários:
neste limiar sagrado que tudo protegia, o desbravador primitivo suspendeu uma vez
por todas as suas campanhas profanas. Charles Higounet redigiu o inventário e o
mapa das florestas da alta Idade Média, época que conheceu, de 500 a 1200, mais
ou menos, uma fase climática quente e, por conseguinte, um retorno ofensivo
da floresta. Entre estas florestas europeias, Higounet distingue a floresta
das Ardenas, que desde o tempo dos Celtas era a floresta por excelência.
Regista o aparecimento, ao lado do italiano, do castelhano [e do português] selva,
que continua o termo latino silva, e do
germânico wald, do termo forestis ou
foresta, que dará forêt em francês,
[floresta, em português], Forst em alemão, forest em inglês. A mais
antiga atestação conhecida do termo associa por outro lado a ideia de floresta à
ideia de solidão. Trata-se de um diploma de Sigeberto III, de 648, para a abadia
de Stavelot-Malmédy: na nossa floresta chamada Ardenas, vasta solidão onde se reproduzem
os animais selvagens.
A palavra
deriva sem dúvida da expressão silva forestis, uma selva que depende do tribunal,
forum, do rei. Designa na sua origem uma reserva de caça; tem um significado
jurídico. Assim, os homens da segunda função indo-europeia, os guerreiros, os bellatores, os homens da força física,
tentaram apropriar-se da floresta durante a Idade Média e fazer dela o seu terreno
de caça. Mas tiveram de dividi-la com os homens da primeira função, os oratores, os quais, por via da apanha,
da lenha, do carvão, do mel., etc., fizeram dela um território suplementar da actividade
económica. Mas todos, na realidade, foram para lá sobretudo para se marginalizarem,
para se comportarem como homens da natureza, fugindo ao mundo da cultura
em todos os significados da palavra.
Para
voltarmos à floresta material do Ocidente medieval, sublinhemos com Charles Higounet
que ela serviu de fronteira, de refúgio para os cultos pagãos, para os eremitas
que vieram procurar lá, o deserto (eremum),
para os vencidos e os marginalizados: servos fugitivos, assassinos, aventureiros,
malfeitores; mas também que ela foi útil, preciosa, reserva de caça, terreno de
apanha, inclusivamente para o mel, com o qual se produzia a bebida mais espalhada
em toda a Europa, e a cera para iluminar as igrejas, lugar de extracção da madeira,
da indústria vidreira e da metalurgia, campo de pastagem para os animais
domésticos, em particular para os porcos. Marc Bloch tinha já assinalado a dupla
face da floresta medieval, que cobria espaços muito maiores que hoje, com
manchas muito salpicadas de clareiras. Ela era ao mesmo tempo repulsiva e desejável:
sob tantos aspectos tão pouco hospitaleira, a floresta não era contudo de modo algum
inútil. Mas evocava os textos antigos que falam da opacidade, da densidade das
florestas.
Em Les
caractères originaux de l’Histoire rurale française, ainda Bloch, depois de
ter sublinhado que a floresta medieval estava longe de estar não aproveitada e vazia
de homens, evoca a chusma pouco tranquilizadora dos trabalhadores da floresta: todo
um mundo de boisilleurs muitas vezes suspeito
aos sedentários percorria-a ou nela construía as suas cabanas: caçadores, carvoeiros.
artífices, pesquisadores de mel e de cera selvagens (os bigres dos textos antigos), fabricantes de cinzas que eram empregadas
na indústria do vidro ou do sabão, tiradores de cascas de árvores que serviam para
curtir os couros ou também para entrançar cordas. Eis os habitantes deste deserto,
vagabundos muitas vezes suspeitos aos sedentários! Entre os inúmeros documentos
sobre a floresta medieval. fixemo-nos num grupo de três publicado recentemente.
O primeiro é de um beneditino, Lambert Hersfeld, que, nos seus Anais, com referência
a Agosto de 1073, conta um episódio da luta do imperador Henrique IV contra os Saxões.
Evoca a densa floresta germânica, imensa e vazia (vastíssima), dificilmente penetrável,
não hospitaleira, porquanto Henrique e os seus companheiros por pouco não morreram
de fome lá dentro, assustadora, menos para um caçador habituado a orientar-se no
segredo das florestas. O segundo documento é um texto hagiográfico tirado da Vida
de S. Bernardo de Tiron, escrita por Gaufredus Grossus no início do século XII:
ele descreve as vastas solidões que se encontram nos confins do Maine e da Bretanha,
como um segundo Egipto povoado de uma multidão de eremitas. Entre estes encontra-se
Pedro, que se alimenta de rebentos novos das plantas e construiu para si uma casinha
com cascas de árvore.
Quando
Bernardo e alguns outros vão ter com ele, ele vai com os seus cestos para a
floresta que rodeava por todos os lados a área da sua morada, apanha rapidamente
vergônteas de espinhos e de silvas, colhe os frutos das aveleiras e outras árvores
selvagens. Por fim, encontra na cavidade de um tronco um enxame de abelhas com cera
e mel em tal quantidade que se julgaria terem estas riquezas saído do próprio corno
da abundância. Aqui sente-se o eco da concepção paradisíaca do deserto, herdada
da literatura monástica da alta Idade Média. O terceiro texto é célebre: Sugero
conta nele como, para construir a armação da basílica de Saint-Denis, foi percorrer,
contra a opinião geral, a floresta de Yveline e, através dos cortes, das
manchas de sombra, das florestas de silvas, encontrou árvores suficientemente grossas
e grandes para fazer doze traves. Vemos aqui em acção os utilizadores da
floresta, que a reduzem ao estado de bosque para cortar madeira e nela vêem apenas
uma fonte de matérias-primas». In Jacques le Goff, Il meraviglioso e il
quotidiano nell’occidente medievale, Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e
o quotidiano no ocidente medieval, Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-44-1563-5.
Cortesia
de E70/JDACT