terça-feira, 10 de maio de 2016

A Musa de Camões. Maria Helena Ventura. «A Senhora Infanta andava por demais atormentada com outras coisas para lhe poder acudir. Tantos outros tinham sido presos, acusados de luteranismo, Diogo Teive, Buchanan..., costumava reler certas partes das obras, mormente a de Góis por falar de seu pai…»

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O pulsar lento da vida
«(…) É dona Guiomar. Com um mover de olhos carregado de sentido, segreda-me que vêm aí os outros. Corre então a buscar a caixinha donde tira os papéis que meto numa das mangas tufadas, antes de invadirem o quarto e de eu me instalar na antecâmara vazia. Lá dentro levo a mão ao peito, mas logo a retiro, como se o coração me dissesse que ainda não é tempo de abrir o minúsculo caderno. Depois apalpo o enchumaço da manga... Não é acertado tirá-lo, por enquanto. Encostado à porta fechada rodo o olhar por todo o aposento. As paredes ainda estão vestidas com panos de arrás, com retratos de menores dimensões das mesmas personagens que povoam os salões, alguns já pintados por Gaspar Cão. É o mesmo lugar dos móveis, dos objectos pessoais alinhados na mesa, o tinteiro seco, a pena que tantas vezes segurou. Mas olhando o espaço onde dantes se sentava, pergunto-me porque razão, tendo conseguido revê-la, não me sinto apaziguado, porque pesam as lembranças que me vêm cercando? E no entanto é aqui que quero estar, neste lugar onde Sua Senhoria viveu a revelação do seu grande amor, onde tivemos as melhores conversas como no dia em que, forçando-me a sentar no tamborete de couro, lhe revelei o segredo da minha identidade.
Ouso transferir-me para a cadeira que foi sua, atrás da mesa. Imagino serem os meus os seus olhos azuis, a medirem a rigorosa simetria dos objectos em relação ao espaço. Em cada um dos cantos da sala, de cada lado da porta, um jarrão da Índia quase da altura de uma pessoa meã. Nas estantes pequenas de madeira importada, livros de impressão recente trazidos da biblioteca, os de leitura frequente em cima da mesinha. Ainda aberto Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, escrito por Damião de Góis e publicado em 1567. Lembro então que o humanista fora nomeado por alvará de João III do ano de 1548, guarda-mor da Torre do Tombo, cargo que exerceu mesmo depois do jesuíta Simão Rodrigues o denunciar à Inquisição (maldita). O cerco que lhe faziam tinha por raiz o muito rigor factual das obras que escrevia, mas sempre com límpida isenção. De pouco lhe adiantou. Depois do jesuíta foram outros como o conde de Tentúgal, Pêro Andrade Caminha... A crónica foi mal entendida pelo cardeal Henrique e o autor acabaria por ser preso, torturado, só liberto muito perto de morrer.
A Senhora Infanta andava por demais atormentada com outras coisas para lhe poder acudir. Tantos outros tinham sido presos, acusados de luteranismo, Diogo Teive, Buchanan..., costumava reler certas partes das obras, mormente a de Góis por falar de seu pai, e nunca encontrou senão perfeição sobeja para atrair animosidade... Por estas e outras lembranças, como lamento não dispor de livre arbítrio para mudar o curso dos acontecimentos, prolongar a vida de alguns, a vida de Sua Senhoria. Mas se pudesse, teria engenho para fazer o que melhor lhe conviesse, desejaria ela continuar a viver privada de alegria e esperança? Talvez haja um tempo certo para tudo, até para cada um insuflar a existência ou desistir dela. Fecho os olhos uns segundos. Lá de fora vem um riso estranho de alguém que passa no corredor, um riso que não se acomoda ao momento, diferente ainda daqueles risos cristalinos das damas a entrarem na sala de trabalho, a desfiarem conversas ao ritmo dos bordados na talagarça. Tão gratas e vivas são essas lembranças que as deixo fluir como raio de sol a romper as nuvens negras que envolvem o paço. Anuncia-se o bom tempo, as moradoras numa roda a contarem segredos, no meio delas Sua Senhoria a olhar-me, a esboçar aquele sorriso irresistível que antes da voz me chamava, para me entregar um livro de gravuras acabado de copiar para a tela, a minha mão a roçar a sua mão graciosa, o rubor a subir-me ao rosto. As nuvens correm em direcção do mar, destapam a limpidez aguada do céu. Agora são nítidos os aromas e os espaços de então, audíveis as falas que sempre me acompanharam.
Ainda agora discorria e tão pronto se foi. Misturam-se com os séculos que atravessei estes minutos que abrem a porta a pensamentos melhores, como séculos me hão de parecer os dias, os movimentos repetidos da onda na escuma do mar, o pulsar dos corações próximos do meu na dor. Só os gestos dela únicos, emergindo de um diferente borbulhar de vida, serão rápidos de mais, até no meu coração, que por isso os desenrola de uma meada para enrolar na outra, sem nunca se cansar de os rever vestidos de muita saudade. Não aproveita muito a um pobre momo divertir os outros. A não ser para dar guarida aos danos de alma, adoçar disposições melancólicas. Talvez carregar no seu o sofrimento alheio, numa ordem discreta a quem o ignora para que deixe folgar um pouco quem padece. E sossegado com a consciência, continuar a venerar quem lhe quer bem, guardar quem bem lhe quer da peçonha que ronda. A peçonha. Parecia perseguir os caminhos da Senhora Infanta e até de quem, por amor dela, procurava enganar o tempo em que se estiolava. Posto que outro acordo de casamento tinha falhado, mudava-se-lhe o pensamento e o semblante, tirava o sentido das frechas de Cupido e afogava as mágoas entre frases sinuosas e discussões sobre leituras. Gostava de ouvir discorrer à volta de perguntas difíceis, tantas vezes levantadas nos serões». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-940-6.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT