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Segunda
Carta a Clara
Meu amor.
Ainda há poucos instantes (dez
instantes, dez minutos, que tanto gastei num desolador desde a nossa Torre de
Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto ao meu, sem que nada os
separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude, e
já estou tentando reconfigura ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse
inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e
única vida. É que, longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim
cessam de ser, e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto, Apenas,
pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar
junto de mim e murmurar o meu nome, recomeço a aspirar desesperadamente para
ti, como uma ressurreição!
Antes de te amar, antes de receber
das mãos de meu deus a minha Eva, que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando
entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha
realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu, Amo,
logo existo! E não foi só a minha realidade que me desvendaste, mas ainda a
realidade de todo este universo, que me envolvia como um ininteligível e
cinzento montão de aparências. Quando há dias, no terraço de Savran, ao
anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos
teus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus
ombros, não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era
ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas,
a beleza inesperada que tu sobre elas derramas por uma emanação que te é
própria, e que antes de viver ao teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não
percebe a vermelhidão das rosas ou o verde tenro das relvas antes de nascer o
Sol! Foste tu, minha bem-amada, que alumiaste o mundo. No teu amor recebi a
minha iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o antigo iniciado, posso
afirmar: também fui a Eléusis; pela larga estrada pendurei muita flor que
não era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Elêusis
cheguei, em Eléusis penetrei, e vi e senti a verdade!...
E acresce ainda, para meu martírio
e glória, que tu és tão suntuosamente bela e tão etereamente bela, de uma
beleza feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já concebera,
que nunca julgara realizável. Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda
perfeita Vénus de Milo, pensei que, se debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar
os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de
lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos,
consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se sob esses seios,
que foram o apetite sublime dos Deuses e Heróis, um dia palpitasse o amor e com
ele a Bondade; se o seu mármore sofresse, e pelo sofrimento se
espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se
ela fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do
Prazer se tornasse Senhora da Dor, então não estaria colocada num museu, mas consagrada
num santuário, porque os homens, ao reconhecer nela a aliança sempre almejada e
sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto a teriam aclamado in aeternum, como
a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vénus só oferecia a serena
magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na lama e a
consome. E a criatura incomparável do meu cismar, a Vénus Espiritual, Citeréia
e Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E quando eu assim pensava, eis que
tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes de um
sonho que deve ser universal, mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só
por mim quiseste ser descoberta!
Vê, pois, se jamais te deixarei
escapar dos meus braços! Por isso mesmo és a minha Divindade, para sempre e
irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os sacerdotes de
Cartago acorrentavam às lajes dos Templos, com cadeias de bronze, as imagens de
seus Baals. Assim te quero também, acorrentada dentro do templo Avaro que te construí,
só Divindade minha, sempre no teu altar, e eu sempre diante dele rojado, recebendo
constantemente na alma a tua visitação, abismando-me sem cessar na tua essência,
de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão inefável, que é para ti
um acto de Misericórdia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é
que fosses invisível para todos e como não existente, que perpetuamente um
estofo informe escondesse o teu corpo, uma rígida mudez ocultasse a tua
inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência incompreendida. E só
para mim, de dentro do invólucro escuro, se revelaria a tua perfeição
rutilante. Vê quanto te amo, que e queria entrouxada num rude, vago vestido de
merino, com um ar quedo, inanimado... Perderia assim o triunfal contentamento
de ver resplandecer entre a multidão maravilhada aquela que em segredo nos ama.
Todos murmurariam compassivamente: pobre criatura! E só eu saberia, da pobre
criatura, o corpo e a alma adoráveis!» In Eça de Queiroz, Cartas D'Amor, O Efémero Feminino, Correspondência de Fradique Mendes,
1900, Editora Garamond, Rio de Janeiro, 2001, ISBN 978-858-643-546-5.
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