domingo, 1 de maio de 2016

Um País Encantado. Luís Miguel Rocha. «Pensavas que faziam melhor? Agora temos um líder melhor do que todos os reis que tivemos, que cuida do nosso país e das nossas possessões com dedicação e devoção. Tens visto? Eu não queria que morresses…»

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O importante não é aquilo que fazem de nós, mas que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós. In Jean.Paul Sartre

«(…) Está cá o coronel, neste modesto cemitério de vila pequena em que a maior parcela está sete palmos abaixo do chão, coberta de terra barrenta que acaba num remate melhor ou pior moldado, depende do obrador, de terra em cima de terra, uns com uma cruz e o nome do enterrado e outros com uma placa marmórea com dizeres do ano de procedência e de enterramento, sem nada a encher o espaço entre as datas como se tivesse pasmado por cá e tivesse deixado passar o tempo até à guia de marcha para o além, sem um assento sobre o que engenhou e o que alcançou, nem com quem o fez ou com quem se foi, apenas se assenta que cá se esteve, de quando a quando, e chega que até já é de mais, cada um que se inquiete com o que fez porque da história, não nos cemitérios que são apenas albergues, escrever-se-á apenas o que se pensa que cada um atalhou, mesmo dos deste familiar jazigo, sem datas, mas acima do chão.
Pensas que não me lembro quando morreste? Foi no dia de hoje, há vinte e dois anos, fizeste questão de me lembrar. Ela até é parecida contigo, riu-se para mim, mas devias ser tu a chincar de mim. Ainda não me perdoaste por ser republicano? Com muito orgulho devo dizer-te. Vês como o nosso país está muito melhor? Mais desenvolvido, mais disciplinado, mais cívico... Melhor do que o teu, que estava sempre agarrado ao passado e não andava para a frente. Pensavas que faziam melhor? Agora temos um líder melhor do que todos os reis que tivemos, que cuida do nosso país e das nossas possessões com dedicação e devoção. Tens visto? Eu não queria que morresses, queria que continuasses aqui comigo, fizeste-me muita falta, não tínhamos as mesmas ideias, só isso, mas não era preciso zombares de mim. Falhei. Não tive nenhum macho como tu. Tu sabes que eu queria muito um, era o que mais queria, mas não, tinhas de te meter, não é? Fica sabendo que tenho cinco filhas lindas e que sou um bom pai para elas e serão todas melhores do que todos os teus filhos, desabafa o coronel a arejar as palavras amarradas há demasiado tempo no fundo do lugarejo onde se arrecadam as frases que fazem as verdades que se querem dizer. Crê o coronel que o problema não está em dona Margarida e que a sua desfeita é provocada pelo pai que há vinte e dois anos descansa em paz, no cemitério da vila, sem pedir nem perguntar nada, com visitas escassas no dia dos fiéis, não procuradas por ele porque nesses dias vai quem quer e lhe convém ou saber-se-ia se algum defunto pedisse que se lá fosse no dia dos mortos ou em qualquer outro se não fossem todos iguais. Cuida o nosso coronel que assim é, já vai a sair do cemitério sem olhar para trás. É o pai, claro que sim, que não deixou, no aniversário do seu passamento, de lhe manifestar que não lhe perdoa pelo republicanismo e pela traição. Porque um filho que atraiçoa um pai não merece absolvição. Essa, só Deus pode conceder... se quiser. Continue a descansar em paz o major António Silveira e deixe seu filho embarcado nesses pensamentos porque se bem não lhe fica mal também não.
Chega a casa o nosso coronel, meditabundo, trazido pelo motorista, o Albino, porque um coronel é conduzido, não conduz, a não ser no campo de batalha. Aí quem manda é ele, nos que estão abaixo da posição, bem certo, e que não são poucos. Sai do carro sem abrir boca nem para um agradecido obrigado. Não faz falta, obrigado já o motorista é a transportar os da casa para onde lhes aprouver, é essa a sua função, todos temos uma e não têm de nos agradecer por cumprir o que tem de ser. Passa pela porta frontal, mas não entra, decide ir dar a volta ao solar, entrar pela cozinha. Por que não? É a sua casa, pode entrar por onde quiser e o que não é habitual não quer dizer que seja proibido, pela porta das traseiras vai entrar, aquela que dá para a cozinha, ver se lá está Conceição Genoveva, que bem precisa dos seus habituados serviços. Súbita vontade, porque essas vêm e vão conforme entendem e não acatam ordens, nem mesmo de militar. É preciso desafogar. Está a chegar o coronel à porta traseira da cozinha, mas fica-se pelo abrir e detém-se na intenção. Ouve-se qualquer coisa, um vagido abafado, parece criança. Ele sabe que não, conhece aquela forma de gemer. Vai entrando de atalaia, feito bufo que vai ouvir para contar, perdoe-nos o nosso coronel a aleivosia, não tornaremos a fazê-lo, não merece tal vileza neste escrito já que não faz nada de mal, a casa é sua e até tenta não apoquentar quem tal gemido atiça em ânsia de não ser achado. Ou será de desespero e dor e quer ser encontrado? A resposta se verá e, na dúvida, o melhor é manter-se incógnito, não vá estragar o ambiente a algum subalterno ou alguns, porque normalmente é proveitoso que sejam dois, mas podem ser mais, se bem que um também faz o trabalho. E para os que de nós perversos forem satisfaçam o apetite, porque o coronel já desvendou o enigma, é Conceição Genoveva que está a cortar o bacalhau enquanto a Gracinda segura. Ela corta, a outra segura, ela corta, a outra segura, mas o raio do animalejo é duro como cornos, como é costume dizer, e Conceição Genoveva geme do esforço da tarefa porque a faca cega encrava a cada impulso e nada disso tem que ver com dor e prazer muito menos». In Luís Miguel Rocha, Um País Encantado, Planeta Editora, Lisboa, 2005, ISBN 972-731-176-8.

Cortesia de PlanetaE/JDACT