segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Lamento do Violino. Gabriel Rolón. «Ainda se recorda dos seus braços fortes, a sua palavra firme e afectuosa. Pablo sente saudade de um modo quase infantil, inexplicável e com sofrimento. Como sente saudade dela»

jdact e wikipedia

«O inferno dos vivos não é algo que está por vir; há um, que é aquele que já se vive aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não o sofrer. A primeira, para muitos, é fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto em que não é mais possível vê-lo, percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: buscar e saber reconhecer quem e o quê, em meio ao inferno, não é o inferno. E fazê-lo durar, e dar-lhe espaço». In Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis.

«Poucas coisas se parecem tanto com a morte como o silêncio, e ele bem sabe disso. E onde não há lugar para as palavras aparece o absurdo, o inabordável, o inacessível. O que é impossível de falar e que se perde numa obscuridade sem nome. Só uma dor muda e dilacerante se ergue como última barreira diante da loucura. Por isso o seu trabalho deixa-o apaixonado e o seduz. Cada paciente representa um novo labirinto e em cada história se desdobra uma angústia que clama por ser calada. E, num estranho paradoxo, a angústia só se silencia com palavras. A angústia. Sua companheira permanente, a que desde sempre exerce sobre ele uma atracção quase patológica. Como essas grelhas eléctricas de luzes azuis que nas antigas pizzarias atraíam os insectos em direcção à morte. É assim. A angústia fascina-o e cativa-o.
Talvez não tenha sido outra coisa que o tenha impulsionado para ser psicanalista mais do que tentar fazer algo por essa angústia que aos pacientes é intolerável e para ele, irresistível. O seu pai havia tido um começo de vida difícil, quase indesejável. Pablo ainda se recorda das noites em que ficavam a conversar a sós. Com os olhos assombrados, escutava como ele falava sobre uma infância carente e ameaçada, quase com ternura. Mas sabia que por detrás da aparente aventura de dormir na rua ou dos códigos do reformatório, escondia-se a angústia. Por isso, ficava hipnotizado escutando o relato. Imaginando o seu pai-menino tremendo de medo pelas noites, indefeso ante um destino injusto. Pablo não teria mais de oito ou nove anos quando, pela primeira vez, perguntou-se se alguém teria escutado essa dor que percorria o relato do seu pai e da qual nem sequer ele mesmo parecia dar-se conta. Ou, talvez, preferisse não se dar conta. Não é simples aceitar que nos deixaram abandonados, sozinhos. A solidão é, também, outra das máscaras da morte. Pablo sabe muito bem disso, porque também está só. E não é por acaso que pensa no seu pai justamente hoje. Necessita dele.
Faz exactamente um ano que não vê Alejandra, e a dor atravessa o corpo dele. Seu pai saberia o que lhe dizer, ou, pelo menos, como contê-lo. Desde a sua morte, Pablo não tem podido descansar para alentar-se em ninguém mais e hoje isso lhe custa muito. Quanto tempo faz que não permite que ninguém o abrace quando está mal, quanto tempo faz que não chora? O seu pai foi um homem de olhar franco e seguro, que sempre intuía os seus estados de ânimo e que se sentia no direito de questioná-lo, porque sabia que podia contê-lo. Ainda se recorda dos seus braços fortes, a sua palavra firme e afectuosa. Pablo sente saudade de um modo quase infantil, inexplicável e com sofrimento. Como sente saudade dela. Ela e o seu sorriso inocente, ela e a sua sexualidade violenta, ela e a sua maldita inteligência. Um dia, exactamente um ano atrás, Alejandra guardou as suas coisas, enfiou-se na sua cama e entregou-se de um modo desesperado. Ao terminar, caiu em lágrimas, abraçada a ele.
Quando Pablo despertou, já não estava ali. Mas eles não estavam no jogo do mistério, porque antes de partir deixou-lhe num papel sobre a mesa o endereço e o telefone. Ao lê-lo, Pablo percebeu que Alejandra iria embora da cidade. Pensou um momento, com a intenção de compreendê-la. O quanto a havia maltratado, para que ela decidisse deixar tudo o que havia construído até então, família, amigos e trabalho, apenas para ficar longe dele? Sabe que sim. Mesmo que custe reconhecer, não pode enganar-se. É consciente de que os dois se maltrataram muito. Ele com a sua tamanha sinceridade que fere, buscando levar tudo até o limite, forçando-a até que não pudesse mais, jogando perversamente com o domínio que exercia sobre ela. Alejandra, da sua parte, amou-o de uma maneira incondicional e doentia e cedeu aos perigosos jogos que ele propunha. Naquela última noite, Pablo olhou para os seus seios, o seu púbis, beijou e tocou cada parte de seu corpo como se quisesse guardá-la para sempre na memória da sua boca e de suas mãos. E ela se deixou olhar, deixou-se tocar, foi um pouco o seu brinquedo, deixou-o fazer a seu desejo e, como sempre, desfrutou com isso. Porque gozava ao ver a cabeça de Pablo entre as suas pernas enquanto a beijava ou ao sentir como se movia dentro dela ao mesmo tempo em que sua boca lhe mordia o pescoço de um modo quase animal. Mas o que mais desfrutava era olhá-lo no instante final, gemendo, com essa expressão que oscilava entre prazer e dor durante poucos segundos. Talvez, porque esse fora o único momento no qual podia vê-lo tal como era, sem disfarces, totalmente despojado de couraças e imagens inventadas». In Gabriel Rolón, O Lamento do Violino, 2010, Editora Planeta, tradução de Clene Salles, 2012, ISBN 978-857-665-967-9.

Cortesia de EPlaneta/JDACT