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«O inferno dos vivos não é algo que está por
vir; há um, que é aquele que já se vive aqui, o inferno que habitamos todos os
dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não o sofrer. A
primeira, para muitos, é fácil: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o
ponto em que não é mais possível vê-lo, percebê-lo. A segunda é arriscada e
exige atenção e aprendizagem contínuas: buscar e saber reconhecer quem e o quê,
em meio ao inferno, não é o inferno. E fazê-lo durar, e dar-lhe espaço». In Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis.
«Poucas
coisas se parecem tanto com a morte como o silêncio, e ele bem sabe disso. E
onde não há lugar para as palavras aparece o absurdo, o inabordável, o
inacessível. O que é impossível de falar e que se perde numa obscuridade sem
nome. Só uma dor muda e dilacerante se ergue como última barreira diante da
loucura. Por isso o seu trabalho deixa-o apaixonado e o seduz. Cada paciente
representa um novo labirinto e em cada história se desdobra uma angústia que
clama por ser calada. E, num estranho paradoxo, a angústia só se silencia com
palavras. A angústia. Sua companheira permanente, a que desde sempre exerce
sobre ele uma atracção quase patológica. Como essas grelhas eléctricas de luzes
azuis que nas antigas pizzarias atraíam os insectos em direcção à morte. É
assim. A angústia fascina-o e cativa-o.
Talvez
não tenha sido outra coisa que o tenha impulsionado para ser psicanalista mais
do que tentar fazer algo por essa angústia que aos pacientes é intolerável e
para ele, irresistível. O seu pai havia tido um começo de vida difícil, quase
indesejável. Pablo ainda se recorda das noites em que ficavam a conversar a
sós. Com os olhos assombrados, escutava como ele falava sobre uma infância
carente e ameaçada, quase com ternura. Mas sabia que por detrás da aparente
aventura de dormir na rua ou dos códigos do reformatório, escondia-se a angústia.
Por isso, ficava hipnotizado escutando o relato. Imaginando o seu pai-menino
tremendo de medo pelas noites, indefeso ante um destino injusto. Pablo não
teria mais de oito ou nove anos quando, pela primeira vez, perguntou-se se
alguém teria escutado essa dor que percorria o relato do seu pai e da qual nem
sequer ele mesmo parecia dar-se conta. Ou, talvez, preferisse não se dar conta.
Não é simples aceitar que nos deixaram abandonados, sozinhos. A solidão é,
também, outra das máscaras da morte. Pablo sabe muito bem disso, porque também
está só. E não é por acaso que pensa no seu pai justamente hoje. Necessita
dele.
Faz
exactamente um ano que não vê Alejandra, e a dor atravessa o corpo dele. Seu
pai saberia o que lhe dizer, ou, pelo menos, como contê-lo. Desde a sua morte,
Pablo não tem podido descansar para alentar-se em ninguém mais e hoje isso lhe
custa muito. Quanto tempo faz que não permite que ninguém o abrace quando está
mal, quanto tempo faz que não chora? O seu pai foi um homem de olhar franco e
seguro, que sempre intuía os seus estados de ânimo e que se sentia no direito
de questioná-lo, porque sabia que podia contê-lo. Ainda se recorda dos seus
braços fortes, a sua palavra firme e afectuosa. Pablo sente saudade de um modo
quase infantil, inexplicável e com sofrimento. Como sente saudade dela. Ela e o
seu sorriso inocente, ela e a sua sexualidade violenta, ela e a sua maldita
inteligência. Um dia, exactamente um ano atrás, Alejandra guardou as suas
coisas, enfiou-se na sua cama e entregou-se de um modo desesperado. Ao terminar,
caiu em lágrimas, abraçada a ele.
Quando
Pablo despertou, já não estava ali. Mas eles não estavam no jogo do mistério,
porque antes de partir deixou-lhe num papel sobre a mesa o endereço e o telefone.
Ao lê-lo, Pablo percebeu que Alejandra iria embora da cidade. Pensou um
momento, com a intenção de compreendê-la. O quanto a havia maltratado, para que
ela decidisse deixar tudo o que havia construído até então, família, amigos e
trabalho, apenas para ficar longe dele? Sabe que sim. Mesmo que custe
reconhecer, não pode enganar-se. É consciente de que os dois se maltrataram
muito. Ele com a sua tamanha sinceridade que fere, buscando levar tudo até o
limite, forçando-a até que não pudesse mais, jogando perversamente com o
domínio que exercia sobre ela. Alejandra, da sua parte, amou-o de uma maneira
incondicional e doentia e cedeu aos perigosos jogos que ele propunha. Naquela
última noite, Pablo olhou para os seus seios, o seu púbis, beijou e tocou cada
parte de seu corpo como se quisesse guardá-la para sempre na memória da sua
boca e de suas mãos. E ela se deixou olhar, deixou-se tocar, foi um pouco o seu
brinquedo, deixou-o fazer a seu desejo e, como sempre, desfrutou com isso. Porque
gozava ao ver a cabeça de Pablo entre as suas pernas enquanto a beijava ou ao
sentir como se movia dentro dela ao mesmo tempo em que sua boca lhe mordia o
pescoço de um modo quase animal. Mas o que mais desfrutava era olhá-lo no
instante final, gemendo, com essa expressão que oscilava entre prazer e dor
durante poucos segundos. Talvez, porque esse fora o único momento no qual podia
vê-lo tal como era, sem disfarces, totalmente despojado de couraças e imagens
inventadas». In Gabriel Rolón, O Lamento do Violino, 2010, Editora Planeta, tradução
de Clene Salles, 2012, ISBN 978-857-665-967-9.
Cortesia
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