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1812-1813.
Paris. A derrota na Rússia
«Enquanto
a pequena Maria Mância brincava com uma boneca de loiça vestida a preceito, com
botinas de coiro fino, roupão de seda e chapeuzinho de plumas, sua mãe, Isabel Roxas
Lemos, olhava com ternura a filha única e muito querida, que já completara sete
anos. Como o tempo voa, pensava ela. Isabel tinha partido de Lisboa, com a
menina e com o marido, o general Manuel Pamplona, havia quase quatro anos, integrados
na Legião Portuguesa, atravessando uma Espanha em pé de guerra contra Napoleão.
Com um arrepio veio-lhe à memória a cena passada perto de Salamanca, onde o
primo José Soares, jovem tenente de cavalaria, a salvara a si e à filha, enfrentando
sozinho, a galope e de espada desembainhada, um grupo de milicianos espanhóis
que pretendia assaltar o coche no qual viajavam as duas, distanciadas da
escolta. Não sendo bonita, Isabel cativava os interlocutores, com feições
regulares, a pele suave e branca e, sobretudo, pela expressão triste e pouco
segura do olhar. Mas, por detrás desse ar indefinido, havia uma vontade férrea
que, com a idade e as provações da vida, se transformara num génio voluntarioso.
Isabel fizera havia pouco os trinta anos, mas parecia mais velha. Sofrera muito
com a morte prematura dos pais e, logo a seguir, com a do primeiro marido,
ceifados pelas epidemias que assolavam Portugal.
O
exílio forçado em França, com gente de costumes tão diferentes e uma menina para
criar, prolongava as amarguras. Não podiam regressar a Portugal, por serem
considerados traidores. Apesar de tudo o que acontecera, não se arrependia de
ter acompanhado o marido, gostava muito de Pamplona, sempre tão atencioso,
mimando-a constantemente e dedicando-lhe um grande amor. Virando-se para a
filha, disse com meiguice: vem, minha querida, vem dar-me um beijinho. Com os
cabelos castanhos muito bem penteados, a pequenita deitou os braços em redor do
pescoço da mãe, que se ajoelhara para melhor a estreitar. Ó mãezinha, gosto
tanto de si. Voltando a sentar-se na senhorinha forrada a veludo azul forte,
Isabel interrogava-se sobre qual seria o futuro da filha. Herdeira de uma
grande fortuna, com um nome quase tão antigo quanto a própria nação (os Lemos
eram cavaleiros dos reis de Leão, senhores de vinte castelos, que vieram para Portugal
no tempo de Afonso IV; antigos morgados do Calhariz de Benfica e senhores de
Oliveira do Conde, doação feita pelo rei Fernando I; unidos aos Góis desde o
século XIII, usam armas semelhantes só variando o timbre e as cores), estava
agora pobre. Os bens da família Lemos, senhores da Trofa (o senhorio da Trofa
foi doado por Afonso V em 1449 a Gomes Martins Lemos, seu partidário em Alfarrobeira,
para ser transmitido por linha masculina; a mercê compreendia 20 milhas de
margem do rio Vouga, bem como as vilas de Trofa e Castrovães; tinha este senhorio
pertencido a Fernão Álvares Maia, espoliado por ser partidário do infante
Pedro. A doação foi confirmada por Manuel I a Duarte Lemos (1485-1558), capitão
do mar companheiro de Afonso de Albuquerque; foi ele que fundou o belíssimo
panteão dos Lemos na Igreja da Trofa do Vouga; era uma casa riquíssima, com
bens na Estremadura, Beira Litoral e Beira Alta), tinham sido confiscados por
decreto-real e eram delapidados pela voragem de funcionários, vizinhos e até
parentes.
As
únicas propriedades que lhe restavam, em Trás-os-Montes, faziam parte do
morgadio do Bustelo no termo de Chaves, herdado pela menina directamente de seu
pai, e portanto intocável. Fechando os olhos e recostando-se melhor na cadeira,
Isabel recordou o seu primeiro casamento com o primo direito, Manuel Lemos
Chaves. Fora uma união preparada para concentrar os bens que restavam da quase
extinta Casa da Trofa nas mãos do casal mas, infelicidade das infelicidades, ele
morrera passados quatro anos, deixando-lhe aquela menina ainda bebé. Viúva inconsolável,
sempre envolvida por crepes negros de onde sobressaía a cara alva e pouco expressiva,
fora visitada no seu velho palácio da Graça por Manuel Pamplona. Simples visita
de pêsames de um militar que passava por Lisboa». In Pedro Beltrão, As Duas
Condessas, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-421-3.
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