terça-feira, 3 de maio de 2016

As Duas Condessas. Pedro Beltrão. «O exílio forçado em França, com gente de costumes tão diferentes e uma menina para criar, prolongava as amarguras. Não podiam regressar a Portugal, por serem considerados traidores»

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1812-1813. Paris. A derrota na Rússia
«Enquanto a pequena Maria Mância brincava com uma boneca de loiça vestida a preceito, com botinas de coiro fino, roupão de seda e chapeuzinho de plumas, sua mãe, Isabel Roxas Lemos, olhava com ternura a filha única e muito querida, que já completara sete anos. Como o tempo voa, pensava ela. Isabel tinha partido de Lisboa, com a menina e com o marido, o general Manuel Pamplona, havia quase quatro anos, integrados na Legião Portuguesa, atravessando uma Espanha em pé de guerra contra Napoleão. Com um arrepio veio-lhe à memória a cena passada perto de Salamanca, onde o primo José Soares, jovem tenente de cavalaria, a salvara a si e à filha, enfrentando sozinho, a galope e de espada desembainhada, um grupo de milicianos espanhóis que pretendia assaltar o coche no qual viajavam as duas, distanciadas da escolta. Não sendo bonita, Isabel cativava os interlocutores, com feições regulares, a pele suave e branca e, sobretudo, pela expressão triste e pouco segura do olhar. Mas, por detrás desse ar indefinido, havia uma vontade férrea que, com a idade e as provações da vida, se transformara num génio voluntarioso. Isabel fizera havia pouco os trinta anos, mas parecia mais velha. Sofrera muito com a morte prematura dos pais e, logo a seguir, com a do primeiro marido, ceifados pelas epidemias que assolavam Portugal.
O exílio forçado em França, com gente de costumes tão diferentes e uma menina para criar, prolongava as amarguras. Não podiam regressar a Portugal, por serem considerados traidores. Apesar de tudo o que acontecera, não se arrependia de ter acompanhado o marido, gostava muito de Pamplona, sempre tão atencioso, mimando-a constantemente e dedicando-lhe um grande amor. Virando-se para a filha, disse com meiguice: vem, minha querida, vem dar-me um beijinho. Com os cabelos castanhos muito bem penteados, a pequenita deitou os braços em redor do pescoço da mãe, que se ajoelhara para melhor a estreitar. Ó mãezinha, gosto tanto de si. Voltando a sentar-se na senhorinha forrada a veludo azul forte, Isabel interrogava-se sobre qual seria o futuro da filha. Herdeira de uma grande fortuna, com um nome quase tão antigo quanto a própria nação (os Lemos eram cavaleiros dos reis de Leão, senhores de vinte castelos, que vieram para Portugal no tempo de Afonso IV; antigos morgados do Calhariz de Benfica e senhores de Oliveira do Conde, doação feita pelo rei Fernando I; unidos aos Góis desde o século XIII, usam armas semelhantes só variando o timbre e as cores), estava agora pobre. Os bens da família Lemos, senhores da Trofa (o senhorio da Trofa foi doado por Afonso V em 1449 a Gomes Martins Lemos, seu partidário em Alfarrobeira, para ser transmitido por linha masculina; a mercê compreendia 20 milhas de margem do rio Vouga, bem como as vilas de Trofa e Castrovães; tinha este senhorio pertencido a Fernão Álvares Maia, espoliado por ser partidário do infante Pedro. A doação foi confirmada por Manuel I a Duarte Lemos (1485-1558), capitão do mar companheiro de Afonso de Albuquerque; foi ele que fundou o belíssimo panteão dos Lemos na Igreja da Trofa do Vouga; era uma casa riquíssima, com bens na Estremadura, Beira Litoral e Beira Alta), tinham sido confiscados por decreto-real e eram delapidados pela voragem de funcionários, vizinhos e até parentes.
As únicas propriedades que lhe restavam, em Trás-os-Montes, faziam parte do morgadio do Bustelo no termo de Chaves, herdado pela menina directamente de seu pai, e portanto intocável. Fechando os olhos e recostando-se melhor na cadeira, Isabel recordou o seu primeiro casamento com o primo direito, Manuel Lemos Chaves. Fora uma união preparada para concentrar os bens que restavam da quase extinta Casa da Trofa nas mãos do casal mas, infelicidade das infelicidades, ele morrera passados quatro anos, deixando-lhe aquela menina ainda bebé. Viúva inconsolável, sempre envolvida por crepes negros de onde sobressaía a cara alva e pouco expressiva, fora visitada no seu velho palácio da Graça por Manuel Pamplona. Simples visita de pêsames de um militar que passava por Lisboa». In Pedro Beltrão, As Duas Condessas, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-421-3.

Cortesia de OdoLivro/JDACT