segunda-feira, 2 de maio de 2016

O Clube Mefisto. Tess Gerritsen. «Família? Sim, suponho que estas pessoas são a minha família, pensou o rapaz, enquanto o pequeno Teddy se aproximava timidamente, empurrado pela mãe. Agora vais ser o meu irmão, disse Teddy. Vou?»

jdact e wikipedia

PECCAVI
«A palavra latina foi inscrita com sangue na cena de um crime particularmente macabro: pequei. A expressão, mais sinistra ainda nessa solitária noite de Natal, parece uma forma de saudação perversa à médica-legista de Boston, Maura Isles, e à detective Jane Rizzoli. Ambas estabelecem rapidamente uma ligação entre o assassínio da jovem que ali jaz e a psiquiatra Joyce O'Donnell, uma celebridade muito controversa que é também uma adversária de Maura e que faz parte de uma sociedade secreta denominada o Clube Mefisto. Os membros desse clube dedicam-se à análise do mal. Será ele explicável pela ciência? E terá uma presença física? Andarão os demónios pelos caminhos da Terra? Baseando-se numa imensidão de factos históricos e numa misteriosa simbologia religiosa, os investigadores do Clube Mefisto procuram demonstrar uma teoria inquietante: satanás e os seus demónios estão, de facto, entre nós. Mas então o aparecimento de mais um cadáver, desta vez junto à casa onde se reúne o Clube Mefisto, vem evidenciar que alguém ou alguma coisa anda realmente pela cidade em busca de novas vítimas. Os membros do clube começam a recear o próprio tema das suas investigações. Terão eles inadvertidamente invocado uma qualquer entidade das sombras? Maura e Jane são assim arrastadas para uma terrível viagem ao âmago do mal. Onde irão enfrentar um inimigo bem mais perigoso do que todos aqueles que já alguma vez perseguiram. Um inimigo cuja tarefa apenas se iniciou.
Somente um pequeno grupo se reunira nesse dia de Junho quente e infestado de insectos para assistir ao enterro de Montague Saul, não mais do que uma dúzia de pessoas, muitas das quais o rapaz nunca vira antes. Nos últimos seis meses estivera longe, no colégio interno, e agora estava a ver algumas dessas pessoas pela primeira vez. A maior parte delas não lhe interessava minimamente. Mas a família do seu tio, essa sim, interessava-lhe muito. Valia a pena examiná-la. O médico Peter Saul parecia-se muito com o seu falecido irmão, Montague, magro e cerebral nos seus óculos de lentes grossas que lhe davam um ar de mocho, cabelo castanho a rarear para uma inevitável calvíce. A sua mulher, Amy, tinha um rosto redondo e terno, e continuava a lançar olhares preocupados ao seu sobrinho de quinze anos, como se ansiasse por envolvê-lo nos seus braços e abafá-lo com um abraço. O filho deles, Teddy, tinha dez anos, e era todo ele magricelas. Um pequeno clone de Peter Saul, até mesmo nos óculos de lentes grossas. Finalmente havia a filha, Lily. De dezasseis anos. Madeixas do seu cabelo tinham-se soltado do rabo-de-cavalo e agora pegavam-se-lhe à cara com o calor. Parecia desconfortável no seu vestido preto, e continuava a mexer-se impetuosamente para trás e para a frente, como se se preparasse para fugir dali. Como se preferisse estar em qualquer lugar menos neste cemitério, afastando o zumbido dos insectos. Parecem tão normais, tão vulgares, pensou o rapaz. Tão diferentes de mim. Então, de repente, o olhar de Lily cruzou-se com o seu, e ele sentiu um frémito de surpresa. De mútuo reconhecimento. Nesse instante, quase conseguia sentir o olhar dela a penetrar nas mais obscuras fissuras do seu cérebro, examinando todos os lugares secretos que nunca ninguém vira. Que ele nunca deixara que vissem.
Inquieto, desviou o seu olhar. Focando-o, em vez dela, nas outras pessoas que se encontravam à volta da sepultura: a governanta do seu pai, o advogado, os dois vizinhos do lado. Meros conhecimentos que estavam ali somente por uma questão de conveniência social, e não por estima. Conheciam Montague Saul apenas como o tranquilo erudito que regressara recentemente de Chipre, que passara a vida preocupado só com livros, mapas e pequenas peças de cerâmica. Não conheciam realmente o ser humano. Tal como não conheciam realmente o filho dele. Por fim, o serviço fúnebre terminou e o grupo avançou para o rapaz. Como uma amiba preparando-se para o ingerir com a sua compaixão, para lhe dizer como lamentavam que ele tivesse perdido o pai. E tão pouco tempo depois de ter regressado aos Estados Unidos. Pelo menos tens aqui família para te ajudar, disse-lhe o pastor.
Família? Sim, suponho que estas pessoas são a minha família, pensou o rapaz, enquanto o pequeno Teddy se aproximava timidamente, empurrado pela mãe. Agora vais ser o meu irmão, disse Teddy. Vou? A mãe preparou o teu quarto. É mesmo ao lado do meu. Mas eu estou a morar aqui. Na casa do meu pai. Perplexo, Teddy olhou para a mãe. Ele não vem connosco para a nossa casa? Amy Saul atalhou. Não podes viver sozinho, querido. Só tens quinze anos. Talvez gostasses igualmente de Purity, vais gostar de ficar connosco. A minha escola é no Connecticut. Sim, mas o ano escolar acabou. Em Setembro, se quiseres regressar ao teu colégio, claro que podes fazê-lo. Mas durante o Verão virás para nossa casa. - Eu não ficarei sozinho aqui. A minha mãe virá ter comigo. Fez-se um longo silêncio. Amy e Peter olharam um para o outro, e o rapaz conseguiu perceber o que eles estavam a pensar. A mãe dele abandonou-o há muito tempo. Ela vem ter comigo, insistiu. O tio Peter disse suavemente. Falamos disso depois, filho.
À noite, o rapaz ficou acordado na cama, na casa do seu pai na cidade, ouvindo as vozes dos seus tios murmurando lá em baixo, no escritório. O mesmo escritório em que Montague Saul tinha trabalhado nestes últimos meses na tradução dos seus frágeis fragmentos de papiro. O mesmo escritório onde, há cinco anos, sofrera uma apoplexia, desabando sobre a sua secretária. Estas pessoas não deviam estar ali, entre as preciosidades do seu pai. Eram invasores da sua casa. Ele não passa de um rapazinho, Peter. Precisa de uma família. Não podemos propriamente arrastá-lo para Purity se não quiser ir connosco. Quando se tem apenas quinze anos não temos voto na matéria. São os adultos que têm de tomar decisões. O rapaz saiu da cama e deslizou para fora do quarto. Rastejou até metade da escada para ouvir a conversa. E, na verdade, quantos adultos é que ele conheceu? O teu irmão não era exactamente um bom exemplo disso. Estava tão embrulhado nas ligaduras das suas velhas múmias que provavelmente nunca reparou que tinha uma criança debaixo dos pés. Isso é injusto, Amy. O meu irmão era um bom homem. Bom, mas tolo. Nem consigo imaginar que tipo de mulher poderia sonhar ter um filho com ele. E depois deixa o filho para o Monty educar? Não consigo compreender que uma mulher fizesse tal coisa. O Monty não se saiu assim tão mal na educação dele. O rapaz tem tido notas altas na escola. É essa a tua bitola para o que faz um bom pai? O facto de o rapaz ter notas altas? Ele é também um homenzinho aprumado. Vê como se portou durante o serviço fúnebre. Está entorpecido, Peter. Viste uma única emoção na cara dele, hoje? O Monty também era assim. Insensível, é isso que queres dizer? Não, um intelectual. Um espírito lógico. Mas, por baixo de tudo isso, tu sabes bem que este rapaz devia estar a sofrer. Deu-me vontade de chorar, ver quanto ele precisa da mãe neste momento. Ver como ele insiste que ela voltará para estar com ele, quando sabemos que não o fará». In Tess Gerritsen, O Clube Mefisto, 2006, Ulisseia, colecção Vício da Leitura, 2008, ISBN 978-972-568-602-7.

Cortesia de Ulisseia/JDACT