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Mas que este entrecruzamento não nos iluda. Não imaginemos, com fé nas
aparências, que algumas das disciplinas históricas caminharam do contínuo ao
descontínuo, enquanto outras iam do formigueiro das descontinuidades às grandes
unidades ininterruptas; não imaginemos que, na análise da política, das instituições
ou da economia, fomos cada vez mais sensíveis às determinações globais, mas sim
que, na análise das ideias e do saber, prestamos uma atenção, cada vez maior,
aos jogos da diferença; não acreditemos que, ainda uma vez, essas duas grandes
formas de descrição se cruzaram sem se reconhecerem. Na verdade, os problemas
colocados são os mesmos, provocando, entretanto, na superfície, efeitos
inversos. Podem-se resumir esses problemas numa palavra: a crítica do documento. Nada de
mal-entendidos: é claro que, desde que existe uma disciplina como a história,
temo-nos servido de documentos, interrogamo-los, interrogamo-nos a seu
respeito; indagamos-lhes não apenas o que eles queriam dizer, mas se eles
diziam a verdade, e com que direito podiam pretendê-lo, se eram sinceros ou falsificadores,
bem informados ou ignorantes, autênticos ou alterados. Mas cada uma dessas
questões e toda essa grande inquietude crítica apontavam para um mesmo fim:
reconstituir, a partir do que dizem estes documentos, às vezes com meias-palavras,
o passado de onde emanam e que se dilui, agora, bem distante deles; o documento
sempre era tratado como a linguagem de uma voz agora reduzida ao silêncio: seu
rasto frágil mas, por sorte, decifrável. Ora, por uma mutação que não data de hoje,
mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou a sua posição
acerca do documento: ela considera como a sua tarefa primordial, não
interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é o seu valor
expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza,
recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o
que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve
relações. O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através
da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado
e o que deixa apenas rastos: ela procura definir, no próprio tecido documental,
unidades, conjuntos, séries, relações. É preciso desligar a história da imagem
com que ela se deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava a sua justificativa
antropológica: a de uma memória milenar e colectiva que se servia de documentos
materiais para reencontrar a frescura das suas lembranças; ela é o trabalho e a
utilização de uma materialidade documental (livros, textos, narrações, registos,
actas, edifícios, instituições, regulamentos, técnicas, objectos, costumes, etc.)
que apresenta sempre e em toda a parte, em qualquer sociedade, formas de
permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O documento não é o feliz
instrumento de uma história que seria em si mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para
uma sociedade, uma certa maneira de dar status
e elaboração à massa documental de que ela não se separa.
Digamos, para resumir, que a
história, na sua forma tradicional, se dispunha a memorizar os monumentos do passado, transformá-los
em documentos e fazer
falarem estes rastos que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que dizem em
silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma
os documentos em monumentos e que desdobra,
onde se decifravam rastos deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em
profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser isolados,
agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em conjuntos.
Havia um tempo era que a arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos
rastos inertes, dos objectos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado,
se voltava para a história e só tomava sentido pelo restabelecimento de um
discurso histórico; poderíamos dizer, jogando um pouco com as palavras, que a história,
em nossos dias, se volta para a arqueologia, para a descrição intrínseca do
monumento. Isso tem várias consequências. Inicialmente, o efeito de superfície
que já se assinalou: a multiplicação das rupturas na história das ideias, a
exposição dos períodos longos na história propriamente dita. Esta, na verdade,
sob a sua forma tradicional, se atribuía como tarefa definir relações (de
causalidade simples, de determinação circular, de antagonismo, de expressão)
entre factos ou acontecimentos datados: sendo dada a série, tratava-se de precisar
a vizinhança de cada elemento. De agora em diante, o problema é constituir
séries: definir para cada uma dos seus elementos, fixar-lhes os limites,
descobrir o tipo de relações que lhe é específico, formular-lhes a lei e, além
disso, descrever as relações entre as diferentes séries, para constituir,
assim, séries de séries, ou quadros: daí a multiplicação dos estratos, o seu
desligamento, a especificidade do tempo e das cronologias que lhes são
próprias; daí a necessidade de distinguir não mais apenas acontecimentos importantes
(com uma longa cadeia de consequências) e acontecimentos mínimos, mas sim tipos
de acontecimentos de nível inteiramente diferente (alguns breves, outros de
duração média, como a expansão de uma técnica, ou uma rarefacção da moeda;
outros, finalmente, de ritmo lento, como um equilíbrio demográfico ou o
ajustamento progressivo de uma economia a uma modificação do clima); daí a
possibilidade de fazer com que apareçam séries com limites amplos, constituídas
de acontecimentos raros ou de acontecimentos repetitivos». In Michel Foucault, A
Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária,
Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
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