sábado, 8 de setembro de 2018

A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera. «Para se assegurar de que a amizade erótica nunca se deixaria vencer pela agressividade do amor, espaçava intencionalmente os encontros com as suas amantes permanentes»

jdact e wikipedia

O peso e a leveza
«(…) Um dia, porém, num intervalo entre duas operações, uma enfermeira chamou-o ao telefone. Era Tereza. Estava a telefonar-lhe da estação. Ficou contente. Infelizmente, tinha um compromisso para essa noite e só no dia seguinte é que podia estar com ela. Mal desligou, arrependeu-se de não lhe ter dito para vir imediatamente. Ainda estava a tempo de desmarcar o outro encontro! Ficou a pensar no que faria Tereza durante as longas trinta e seis horas que faltavam até estarem um com o outro e só tinha vontade de pegar no automóvel e de pôr-se à procura dela pelas ruas da cidade. Tereza apareceu no dia seguinte à noite. Trazia uma carteira presa a tiracolo com uma fita muito comprida e achou-a mais elegante do que da última vez. Tinha um livro na mão. Ana Karenina de Tolstoi. Falava com jovialidade, talvez mesmo um pouco alto demais e esforçava-se por mostrar que tinha vindo perfeitamente por acaso, devido a uma circunstância precisa: viera a Praga por motivos profissionais, talvez (dizia-o de uma forma muito vaga) à procura de outro emprego. Em seguida, encontraram-se, nus e cansados, deitados lado a lado no divã. Já era de noite. Perguntou-lhe onde é que estava porque podia levá-la de carro. Com um ar aflito, Tereza respondeu que ia procurar um hotel e que deixara a mala depositada na estação. Ainda na véspera receava que, se a convidasse a vir a Praga, ela viesse oferecer-lhe a vida inteira. Agora, ao ouvi-la dizer que a mala estava depositada na estação, pensou que Tereza metera a vida nessa mala e que a tinha deixado depositada na estação antes de lha oferecer. Entrou com ela para o carro, estacionado à frente do prédio, foi à estação, levantou a mala (que era grande e pesadíssima) e levou-a para casa juntamente com Tereza. Como conseguiu decidir-se tão depressa, depois de ter hesitado durante quase quinze dias sem lhe dar o mais pequeno sinal de vida?
O próprio Tomás se sentia admirado. Estava a ir contra todos os seus princípios. Há dez anos, quando se divorciara da primeira mulher, tinha vivido o divórcio com a mesma euforia com que outros celebram o casamento. Compreendera nessa altura que não fora feito para viver com uma mulher, fosse ela qual fosse, e que só poderia ser verdadeiramente ele próprio se vivesse sozinho. Assim, protegia a sua vida até ao mais ínfimo pormenor para que nenhuma mulher munida de uma mala pudesse um dia vir instalar-se na sua casa. Era por isso que só tinha um divã. Embora o divã fosse bastante largo, dizia sempre às amigas que era incapaz de adormecer ao lado de outra pessoa e, depois da meia-noite, levava-as sempre a casa. Aliás, da primeira vez, quando Tereza lá ficou em casa com gripe, não dormiu com ela. Passou a primeira noite num sofá e, nas seguintes, dormiu no consultório do hospital onde tinha uma chaise longue para quando estava de serviço.
Desta vez, porém, adormeceu ao lado dela. De manhã, ao acordar, constatou que Tereza, ainda a dormir, lhe agarrava na mão. Teriam dormido toda a noite de mão dada? Custava-lhe a acreditar. Com uma respiração muito funda, Tereza continuava a dormir, sempre agarrada à sua mão (com tanta força que não conseguia desprender-se). Ao lado da cama, a pesadíssima mala. Não se atrevia a tirar a mão com medo de a acordar. Com mil cautelas, voltou-se de lado para poder observá-la melhor. Mais uma vez, pensou que Tereza era uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas do rio. Pode lá deixar-se à deriva das águas furiosas de um rio a cesta onde se abriga uma criança? Se a filha do faraó não tivesse retirado das águas a cesta de Moisés, nem o Antigo Testamento nem a nossa civilização existiriam! No começo de inúmeros mitos antigos, há sempre alguém que salva uma criança abandonada. Se Políbio não tivesse recolhido Édipo, Sófocles não teria escrito a sua tragédia mais bela! Tomás ainda não sabia que as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora.
Vivera pouco mais de dois anos com a primeira mulher. Tinham tido um filho. O juiz confiou a criança à mãe e condenou Tomás a dar-lhes um terço do ordenado. Ao mesmo tempo, concedeu-lhe o direito de ver o filho duas vezes por mês. Mas sempre que o ia ver, a mãe adiava o encontro. Com certeza que se lhes tivesse comprado prendas caras, teria podido vê-lo com mais facilidade. Percebeu que tinha de pagar o amor do filho à mãe, e pagá-lo antecipadamente. Via-se mais tarde a querer ingenuamente inculcar no filho as suas ideias, diametralmente opostas às da mãe. Só de pensar nisso, ficava cansado. Num domingo em que, como de costume, a mãe desmarcara o encontro à última da hora, decidiu nunca mais ver o filho em dias da sua vida. Afinal porque se prenderia a essa criança mais que a qualquer outra? Não estavam ligados por nada, a não ser por uma noite imprudente. Depositaria escrupulosamente o dinheiro, mas que não viessem exigir dele que, em nome de vagos sentimentos paternos, disputasse a companhia do filho!
É evidente que ninguém estava preparado para aceitar tal raciocínio. Os seus próprios pais condenaram a atitude que tomara e declararam que se Tomás não se interessava pelo filho, também eles, pais de Tomás, deixariam de interessar-se pelo seu. Continuaram portanto a manter com a nora relações de uma ostensiva cordialidade, gabando-se a amigos e conhecidos da sua atitude exemplar e do seu alto sentido de justiça. Num curto espaço de tempo, conseguiu, portanto, desembaraçar-se de uma mulher, de um filho, de uma mãe e de um pai. Só lhe ficara o medo das mulheres. Desejava-as, mas elas atemorizavam-no. Entre o medo e o desejo, arranjara um compromisso; era aquilo a que chamava amizade erótica. Dizia peremptoriamente às amantes: só uma relação expurgada de todo e qualquer sentimentalismo, só uma relação em que nenhum dos parceiros se arrogue qualquer direito especial sobre a vida e a liberdade do outro, pode fazê-los felizes a ambos. Para se assegurar de que a amizade erótica nunca se deixaria vencer pela agressividade do amor, espaçava intencionalmente os encontros com as suas amantes permanentes». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.

Cortesia PdonQuixote/JDACT