«(…) Na grande voluta que
percorria o perímetro do atelier, desde o olhar do pintor, a sua palheta
e sua mão suspensa, até os quadros terminados, a representação nascia,
completava-se para se desfazer novamente na luz; o ciclo era perfeito. Em
contrapartida, as linhas que atravessam a profundidade do quadro são incompletas;
falta, a todas, uma parte de seu trajecto. Essa lacuna é devida à ausência do
rei, ausência que é um artifício do pintor. Mas esse artifício recobre e
designa um lugar vago que é imediato: o do pintor e do espectador quando olham
ou compõem o quadro. É que, nesse quadro talvez, como em toda a representação
de que ele é, por assim dizer, a essência manifestada, a invisibilidade
profunda do que se vê é solidária com a invisibilidade daquele que vê, malgrado
os espelhos, os reflexos, as imitações, os retratos. Em torno da cena estão
depositados os signos e as formas sucessivas da representação; mas a dupla
relação da representação com o modelo e com o soberano, com o autor e com
aquele a quem ela é dada em oferenda, essa relação é necessariamente
interrompida. Ela jamais pode estar toda presente, ainda quando numa
representação que se desse a si própria em espectáculo. Na profundidade que
atravessa a tela, que a escava ficticiamente e a projecta para a frente dela
própria, não é possível que a pura felicidade da imagem ofereça alguma vez, em plena
luz, o mestre que representa e o soberano representado. Talvez haja, neste
quadro de Velásquez, como que a representação da representação clássica e a
definição do espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se a si
mesma em todos os seus elementos, com as suas imagens, os olhares aos quais ela
se oferece, os rostos que torna visíveis, os gestos que a fazem nascer. Mas aí,
nessa dispersão que ela reúne e exibe em conjunto, por todas as partes um vazio
essencial é imperiosamente indicado: o desaparecimento necessário daquilo que a
funda, daquele a quem ela se assemelha e daquele a cujos olhos ela não passa de
semelhança. Esse sujeito mesmo, que é o mesmo, foi omitido. E livre, enfim,
dessa relação que a acorrentava, a representação pode se dar como pura
representação.
A
Prosa do Mundo. As quatro similitudes
Até ao fim do século XVI, a
semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi
ela que, em grande parte, conduziu à exegese e à interpretação dos textos: foi
ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas
visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se
sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a
erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura
imitava o espaço. E a representação, fosse ela festa ou saber, dava-se como
repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda a linguagem,
a sua maneira de anunciar-se e de formular o seu direito de falar. É preciso determos-nos
um pouco nesse momento do tempo em que a semelhança revogará a sua dependência
para com o saber e desaparecerá, ao menos em parte, do horizonte do
conhecimento. No fim do século XVI, no começo ainda do século XVII, como era
pensada a similitude? Como podia ela organizar as figuras do saber? E se é
verdade que as coisas que se assemelhavam eram em número infinito, podem-se, ao
menos, estabelecer as formas segundo as quais era possível ocorrer-lhes serem
semelhantes umas às outras? A trama semântica da semelhança no século XVI é
muito rica: Amicitia, Aequalitas
(contractus, consensus, matrimonium, societas, pax et similia), Consonantia,
Concertus, Continuum, Paritas, Proportio, Similitudo, Conjunctio, Copula.
E há ainda muitas outras noções que, na superfície do pensamento, se entrecruzam,
se imbricam, se reforçam ou se limitam. Por ora, basta indicar as principais
figuras que prescrevem as suas articulações ao saber da semelhança. Dentre elas
há quatro seguramente essenciais». In Michel Foucault, As Palavras e as
Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.
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