sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida. Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828. José Tengarrinha. «… as pessoas se juntavam em grupos nas ruas para discutir os assuntos públicos, como se o País todo fosse uma grande assembleia»

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Defesa da Sociedade
«(…) Queixavam-se as autoridades da crescente falta de decoro, dos preocupantes sinais da desmoralização pública, da dissolução de costumes dos que praticavam a desordem e a desenvoltura, da época convulsa que se atravessava, do transtorno de sentimentos (numerosas contas nos Livros de Secretaria da Intendência Geral da Polícia mostram a grande preocupação pelas festas públicas degenerando em libertinagem, raptos frequentes de donzelas, filhos que faltavam ao respeito pelos pais ou o célebre caso do falso mestre de línguas que seduzia mulheres para práticas ilícitas e fazia em sua casa bailes indecorosos...). Tudo isso, que afectava a tranquilidade pública e a estabilidade, pondo em causa normas por que a sociedade secularmente se regera, era objecto de permanente vigilância e contenção do Poder. Compreende-se, assim, que tenha sido essa então a preocupação central da censura, atenta a tudo o que pudesse abalar os fundamentos sociais e morais, desde a autoridade e prestígio da Nobreza e do Clero à subversão pedreirista, desde as informações falsas ou sensacionalistas que agitassem a opinião pública (mesmo os mais inocentes anúncios na imprensa periódica passaram a ser sujeitos a censura prévia após o alvoroço levantado pelo famoso caso do homem das botas de cortiça que anunciou ir atravessar o Tejo a pé) aos atropelos da língua portuguesa, que tão grandes maus tratos sofria então. Era a defesa da sociedade, em todos os seus aspectos, que acima de tudo estava em causa. E a questão era tanto mais agudamente sentida pelo Poder quanto não havia relações e valores novos suficientemente fortes para se substituírem aos tradicionais. O perigo maior era o do vazio que se criava e que iria dominar o segundo decénio de Oitocentos.
Esta nova atitude do Poder em geral e da Censura em particular prende-se com a alteração que desde o último quartel do século XVIII se assinala em Portugal no relacionamento do poder superior com a sociedade. A exemplo do que já se registara e estava a ocorrer noutros pontos da Europa, o Estado aumenta a sua capacidade de consulta, favorecendo mecanismos de comunicação mais fluida da base social para o topo da hierarquia (este facto é expressivamente documentado no amplo movimento peticionário ao trono que se desenvolve a partir de 1780 e em outros factos, como, por exemplo, a retomada por dona Maria I das tradicionais audiências gerais ao povo, nas manhãs das terças e quintas-feiras, a que concorria muita gente humilde). A sociedade, no seu conjunto, nas suas múltiplas manifestações, impregnava mais profunda e permanentemente o Poder, obrigava este a dar respostas em conformidade, definia novas categorias na relação Estado-Sociedade. O predomínio da defesa do Dogma, como relativo à Fé, passava assim para a defesa da Moral, como relativa aos costumes e' em geral, das relações sociais, reconhecendo-se que as alterações então verificadas constituíam factores de instabilização da sociedade.

Defesa do regime Político
Com as Invasões e as convulsões sociais e políticas que as acompanharam, favoreceu-se a politização da sociedade. A política passou da ciência dos gabinetes e da ocupação dos homens de Estado para objecto da curiosidade de todos, como observou o lúcido Francisco Solano Constâncio. Os testemunhos da época dão-nos conta de como, entre 1808 e 1810, não apenas em Lisboa, as pessoas se juntavam em grupos nas ruas para discutir os assuntos públicos, como se o País todo fosse uma grande assembleia». In José Tengarrinha, Da Liberdade Mitificada à Liberdade Subvertida, Uma Exploração no Interior da Repressão à Imprensa Periódica de 1820 a 1828, Edições Colibri, Lisboa, 1993, ISBN 972-8047-29-0.

Cortesia de Colibri/JDACT