sábado, 22 de setembro de 2018

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Afonso tentava ganhar tempo e apaziguar os ânimos dos barões portucalenses, com idas regulares a Coimbra, onde se esforçava por se imiscuir nos meandros da corte»

jdact e wikipedia

Independência
«(…) Olhavam-no expectantes. Afonso mantinha a pose, mas sentia-se fraquejar por dentro. Apesar da presença incomodativa de Fernão Peres, não pensara seriamente em contestar o poder da sua mãe. Estes senhores pareciam, porém, estar à espera que ele agisse contra ela. Por Deus, não haveria outra solução? Haveria de tornar a ir a Coimbra, entender-se-ia com sua mãe... Ou não? Assim que se viu livre dos senhores, o jovem dirigiu-se ao túmulo do pai, o conde Henrique, na Sé de Braga. Ajoelhou-se e, como estava sozinho, deu livre curso às suas lágrimas, atacado por angústias que julgara olvidadas. Sentia a mesma solidão de há dez anos atrás, quando soube da morte do conde. Porque me deixastes, meu pai?, perguntou, num soluço. Um sussurrar, como o de um manto a deslizar pelo chão de pedra, deu-lhe a entender que alguém se aproximava. Apressou-se a limpar as lágrimas. Mas, ao olhar em volta, não viu vivalma. E, no entanto, sentia uma presença tão forte junto dele... Tornou a fixar o túmulo. O seu braço foi-se estendendo devagar, como se alguma força o atraísse. Assim que as pontas dos seus dedos tocaram a pedra que cobria o sepulcro, pareceu-lhe ouvir a voz do pai: não te deixei, meu filho. Nem nunca te deixarei!
Afonso tentava ganhar tempo e apaziguar os ânimos dos barões portucalenses, com idas regulares a Coimbra, onde se esforçava por se imiscuir nos meandros da corte. Confirmava documentos, forais e cartas de couto, pondo a sua assinatura ao lado da de Fernão Peres. Mas, três anos mais tarde, a paciência dos senhores parecia esgotar-se e verificavam-se novas deserções: os senhores da Silva, de Lanhoso, de Azevedo, de Marnel e de Palmeira, assim como os Ramirões, os Guedões e os Velhos. Entre a alta nobreza, e além dos Trava, restava a dona Teresa o apoio de dois barões. Gomes Nunes, casado com Elvira Peres Trava, irmã de Fernão Peres, era um dos irmãos do conde Afonso Nunes Celanova, a família galega que possuía vastos domínios portucalenses. Além de ser senhor de Toroño, província que tinha o seu centro na cidade de Tui, Gomes Nunes era governador do castelo de São Cristóvão, na margem esquerda do rio Corgo. Como cunhado de Fernão Peres, mantinha-se-lhe fiel, apesar de o irmão Sancho Nunes, senhor da terra de Ponte de Lima, ter acompanhado, logo na primeira vaga de deserções, os ricos-homens de Entre Douro e Minho à residência do arcebispo de Braga.
Egas Gosendes, o senhor de Baião, exercia as funções de mordomo-mor de dona Teresa, o que o punha em terceiro lugar na hierarquia da corte, logo a seguir ao par regente. Teresa continuava ambígua em relação ao filho, como que cega às dificuldades que Afonso teria em suceder ao pai (e a ela própria), estando Fernão Peres Trava instalado no poder. Além disso, tivera uma filha. O que aconteceria se ela ainda desse à luz um varão de Fernão Peres? A situação tornava-se insustentável para Afonso. Numa tarde soalheira de Março, o jovem, prestes a completar dezoito anos, disputava um torneio com os seus companheiros, num descampado, perto do castelo de Guimarães. Praticavam o uso da lança sobre mão. Mantendo-a firme com o antebraço, tentavam derrubar-se uns aos outros das suas montadas. Protegiam o corpo com os lorigões, por baixo dos quais usavam vestes acolchoadas e reforçadas por tiras de cabedal. O treino foi interrompido por um moço de estrebaria ofegante, que anunciava a chegada de visitas ilustres: a própria rainha dona Teresa, acompanhada de Fernão Peres e do seu séquito. Afonso franziu o sobrolho. Sua mãe nunca o visitava. Deixou os companheiros e dirigiu-se ao castelo, onde deu com os recém-chegados a retemperarem-se da viagem. Bebia-se vinho misturado com água e comia-se peixe frito frio sobre fatias de pão, pois, em tempo de abstinência da Quaresma, a carne não era autorizada. Afonso tirou o elmo e puxou o almofre e a coifa para trás. Teresa sorriu-lhe, levantando-se, o que ainda o surpreendeu mais. O jovem admirou-lhe, como sempre, a aparência. O passar dos quarenta não havia apagado a sua beleza.
A mantilha branca, debruada a fio dourado e cingida por um aro de ouro, chegava-lhe aos ombros, mas os caracóis escuros caíam-lhe em cascata até à cinta ainda delgada, que um cinto enfeitado com placas douradas envolvia, por sobre o bliaut verde-escuro. Afonso deu consigo a pensar que não era de admirar que Fernão Peres ainda se sentisse atraído por ela, apesar de mais novo. E logo se amaldiçoou por lhe ocorrerem tais pensamentos. Levou a mão à testa, embaraçado, e tentou dar um jeito aos cabelos colados à cabeça. Depois dos cumprimentos, dona Teresa anunciou: vamos a caminho de Zamora. E havia mister de fazer tão grande desvio? Viemos buscar-te. A mim? Que se passa em Zamora de tão importante, que exija a minha presença? Serás lá armado cavaleiro! Afonso quedou-se estupefacto. Já se falava na sua investidura, que estaria para breve. Mas surpreendia-o que sua mãe tomasse a iniciativa. Assim, de repente? E porquê em Zamora? Porque eu assim o resolvi.
Encarou-a irritado, mas ela prosseguiu, impassível: o corpo da tua tia Urraca ainda nem teve tempo de arrefecer na sepultura, já o teu primo Afonso Raimundes foi coroado rei de Leão e Castela. Tenho um encontro marcado com ele, no lugar de Ricobayo, perto de Zamora. A que propósito? Fernão Peres, ainda sentado à mesa, achou por bem fazer-se ouvir: o recém-coroado el-rei Afonso VII exige a homenagem dos principais senhores dos seus reinos. Alguns já lha prestaram, na cidade de Leão. Ignorando o nobre galego, Afonso dirigiu-se à mãe: e que tenho eu a ver com isso? Sabes que sempre me recusei a aceitar minha irmã Urraca como única herdeira de meu pai e continuo a reclamar a Galiza como parte da minha herança». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
               
Cortesia de Ésquilo/JDACT