terça-feira, 4 de setembro de 2018

Joana. A Louca. Linda Carlino. «O que é aquilo? Doce de amêndoa, maçapão, estes são bispos e ali estão os ossos de santo... Não digais mais nada»

jdact

«(…) Mas só por brevíssimos períodos, Joana. Se ao menos conseguíssemos convencer-vos, a ti e a Filipe, a viver aqui. Ou a mandar-nos o nosso querido neto Carlos para que o educássemos como um verdadeiro espanhol. A Espanha tem de ser governada por um dos nossos, alguém que a ame, alguém que assegure que mantém a sua identidade, a sua dignidade. A voz de Isabel parecia nervosa. Alguém que não a deixe tornar-se pouco mais que um pedaço da Áustria. Estremeceu, tal era o seu desagrado face a tal eventualidade. Agora não, mãe, por favor, agora não. Tenho um presente para vós. Pajem, mande chamar Madame Halewyn e que traga o meu cofre vermelho. Mãe, trouxe um tecido requintadíssimo. Joana, sabes bem que os adornos não me interessam nada. Mas este é um fino material de Bruxelas, perfeito para os vossos véus. Nesse caso, suponho que seja aceitável. Joana lutou contra a mágoa, levantando-se de um salto. Assim que o virdes, vamos à procura de Filipe e do pai. E devem ser quase horas de jantar.
Pelos padrões de Isabel e Fernando, o jantar era uma ocasião extremamente sumptuosa. Um espectáculo imponente de baixelas de ouro e prata, a maior parte pertencente a Beatriz, decorava a mesa e os aparadores. O coração de Joana agradeceu-lhes. Aplaudiu o seu esforço para montar um espectáculo tão impressionante, mas compadecia-se, pois não se comparava nem de longe aos excessos de França e da Flandres. Sabia também como ia contra a sua filosofia de austeridade, tão firmemente implantada enquanto parte do seu luto permanente. A refeição deliciou-a. Infelizmente, era galinha. As magricelas galinhas espanholas haviam sido cobertas de farinha de arroz e cozidas em leite de cabra e água de rosas e, por fim, guarnecidas com uma camada de queijo grelhado. Filipe sussurrou-lhe, desdenhoso: Santo Deus, mais galinha! Uns passarocos esqueléticos que em Bruxelas nem mereceriam o nome de pardais. E fez de conta que comia. Isabel e Fernando ficaram chocados com a sua incrível falta de maneiras à mesa.
Não ligueis, pediu Joana, nervosa. Filipe está a queixar-se de ter de comer galinha depois de uma dieta de canja de galinha durante dias e também tem uma forte aversão ao alho, apesar de eu lhe ter dito que era benéfico. Na verdade, qualquer alimento que não seja preparado pelos seus próprios cozinheiros é sempre considerado suspeito. As nossas desculpas pela galinha. A resposta de Isabel foi gélida. Assegura a Filipe de que não existe alho escondido no seu prato, portanto pode parar de o inspeccionar, como se o que tem defronte de si fosse impróprio para consumo humano. Ao terminarem o primeiro prato, a toalha foi retirada e substituída por outra de linho lavado, delicadamente bordado com frutos do campo. Os criados trouxeram pratos com massas, biscoitos, rosquinhas, maçapão, doce de manteiga e natas. Joana tinha os olhos esbugalhados de alegria.
Filipe, tendes de provar estas delícias de pinhão. Primeiro, tentais transformar-me em frango, agora pensais que sou um esquilo. O que é aquilo? Doce de amêndoa, maçapão, estes são bispos e ali estão os ossos de santo... Não digais mais nada, a igreja mete o nariz em tudo. Dizei aos vossos pais que amanhã lhes ofereço um jantar da Flandres. Isso não fica nada bem. Seria demasiada comida, demasiada animação e demasiado barulho. Exactamente! Um pouco de vida não lhes faria mal nenhum. A propósito, daqui a quanto tempo poderemos apresentar as nossas desculpas e irmos para os vossos aposentos? Tenho na ideia uma sobremesa muito melhor que qualquer destas que vejo na mesa. Que diz Filipe? Que deseja oferecer-vos um banquete da Flandres, mãe. Mas tenho de vos avisar de que será muito diferente daquilo que conheceis. Isabel e Fernando sorriram, aceitando o convite». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-234-231-5.

Cortesia de EPresença/JDACT