«(…) Mas só por brevíssimos
períodos, Joana. Se ao menos conseguíssemos convencer-vos, a ti e a Filipe, a
viver aqui. Ou a mandar-nos o nosso querido neto Carlos para que o educássemos
como um verdadeiro espanhol. A Espanha tem de ser governada por um dos nossos,
alguém que a ame, alguém que assegure que mantém a sua identidade, a sua
dignidade. A voz de Isabel parecia nervosa. Alguém que não a deixe tornar-se
pouco mais que um pedaço da Áustria. Estremeceu, tal era o seu desagrado face a
tal eventualidade. Agora não, mãe, por favor, agora não. Tenho um presente para
vós. Pajem, mande chamar Madame Halewyn e que traga o meu cofre vermelho. Mãe,
trouxe um tecido requintadíssimo. Joana, sabes bem que os adornos não me
interessam nada. Mas este é um fino material de Bruxelas, perfeito para os
vossos véus. Nesse caso, suponho que seja aceitável. Joana lutou contra a
mágoa, levantando-se de um salto. Assim que o virdes, vamos à procura de Filipe
e do pai. E devem ser quase horas de jantar.
Pelos padrões de Isabel e
Fernando, o jantar era uma ocasião extremamente sumptuosa. Um espectáculo
imponente de baixelas de ouro e prata, a maior parte pertencente a Beatriz,
decorava a mesa e os aparadores. O coração de Joana agradeceu-lhes. Aplaudiu o
seu esforço para montar um espectáculo tão impressionante, mas compadecia-se,
pois não se comparava nem de longe aos excessos de França e da Flandres. Sabia
também como ia contra a sua filosofia de austeridade, tão firmemente implantada
enquanto parte do seu luto permanente. A refeição deliciou-a. Infelizmente, era
galinha. As magricelas galinhas espanholas haviam sido cobertas de farinha de
arroz e cozidas em leite de cabra e água de rosas e, por fim, guarnecidas com
uma camada de queijo grelhado. Filipe sussurrou-lhe, desdenhoso: Santo Deus,
mais galinha! Uns passarocos esqueléticos que em Bruxelas nem mereceriam o nome
de pardais. E fez de conta que comia. Isabel e Fernando ficaram chocados com a
sua incrível falta de maneiras à mesa.
Não ligueis, pediu Joana,
nervosa. Filipe está a queixar-se de ter de comer galinha depois de uma dieta
de canja de galinha durante dias e também tem uma forte aversão ao alho, apesar
de eu lhe ter dito que era benéfico. Na verdade, qualquer alimento que não seja
preparado pelos seus próprios cozinheiros é sempre considerado suspeito. As
nossas desculpas pela galinha. A resposta de Isabel foi gélida. Assegura a
Filipe de que não existe alho escondido no seu prato, portanto pode parar de o
inspeccionar, como se o que tem defronte de si fosse impróprio para consumo
humano. Ao terminarem o primeiro prato, a toalha foi retirada e substituída por
outra de linho lavado, delicadamente bordado com frutos do campo. Os criados
trouxeram pratos com massas, biscoitos, rosquinhas, maçapão, doce de manteiga e
natas. Joana tinha os olhos esbugalhados de alegria.
Filipe, tendes de provar estas
delícias de pinhão. Primeiro, tentais transformar-me em frango, agora pensais
que sou um esquilo. O que é aquilo? Doce de amêndoa, maçapão, estes são bispos
e ali estão os ossos de santo... Não digais mais nada, a igreja mete o nariz em
tudo. Dizei aos vossos pais que amanhã lhes ofereço um jantar da Flandres. Isso
não fica nada bem. Seria demasiada comida, demasiada animação e demasiado
barulho. Exactamente! Um pouco de vida não lhes faria mal nenhum. A propósito,
daqui a quanto tempo poderemos apresentar as nossas desculpas e irmos para os
vossos aposentos? Tenho na ideia uma sobremesa muito melhor que qualquer destas
que vejo na mesa. Que diz Filipe? Que deseja oferecer-vos um banquete da Flandres,
mãe. Mas tenho de vos avisar de que será muito diferente daquilo que conheceis.
Isabel e Fernando sorriram, aceitando o convite». In Linda Carlino, That Other
Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, ISBN
978-972-234-231-5.
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