sábado, 15 de setembro de 2018

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Com o escurecer, abatia-se uma densa neblina sobre Braga, naquele serão de fins de Novembro. Os cavalos que transportavam os mais poderosos ricos-homens de Entre Douro e Minho»

jdact e wikipedia

Independência
«(…) Quatro torreões quadrados guarneciam as muralhas de Guimarães e dois mais pequenos flanqueavam a porta principal, a oeste, através da qual Afonso cavalgou. A torre de menagem quadrangular estava plantada no centro do recinto. No seu rés-do-chão, armazenavam-se as provisões e, por razões de segurança, não possuía nenhuma abertura para o lado de fora. Acedia-se ao salão, no primeiro andar, através da escada móvel de madeira, que podia ser recolhida, em caso de perigo. Também o adarve, que corria por sobre as muralhas, estava ligado por uma ponte de madeira à entrada da torre. Afonso entrou no salão, onde os moços mais novos punham a mesa para a ceia. A decoração era ainda mais espartana do que no tempo de seus pais. Desde que dona Teresa fixara a sua residência na imponente alcáçova de Coimbra e o castelo de Guimarães se tornara um posto militar, ninguém cuidava de tais detalhes. Restavam a mesa grande, com os seus bancos corridos e toscos, alguns castiçais, um baú a um canto e os utensílios de atiçar o lume na grande lareira, que, devido ao tempo ameno, ainda não ardia. Cães coçavam as pulgas deitados sobre as tábuas do chão, que precisavam de reparos, e os tapetes que guarneciam as paredes estavam roçados. Nuns, viam-se javalis e corças, outros eram de inspiração religiosa, com as imagens de Cristo e da Virgem. O segundo andar da torre, onde antes ficavam os aposentos dos condes, fora transformado numa sala de dormir para os jovens aspirantes a cavaleiros, sem direito a camas. Dormiam sobre sacos de palha, cobertos por uma manta. E nem para Afonso Henriques se abriria uma excepção.
Em primeiro lugar, havia que treinar a luta corpo a corpo, em que os jovens se iam habituando ao manejo da espada e ao escudo oblongo, chamado de cometa, que chegava a medir mais de quatro pés de altura. Só quando Afonso estava capaz de se defender eficazmente das pancadas e dos golpes do adversário, atacando ao mesmo tempo, começou a sua formação a cavalo. O jovem passava tanto tempo em cima do animal, que o montar se lhe tornou mais natural do que o andar. Muitas vezes, os jovens treinavam toda a noite, já depois de terem passado mais de doze horas em cima da sela, o que não só servia para praticar o cavalgar em si, mas também o controlar do próprio cansaço. O lorigão possuía um almofre, com que se cobria a cabeça, também em malha de ferro, e debaixo do qual se usava a coifa, um capucho acolchoado. O elmo cónico, com a sua protecção nasal, completava o armamento.
O treino intenso levava Afonso a experimentar novas técnicas e procedimentos, até acordar, de repente, e constatar que não se encontrava em cima do seu cavalo, mas sim deitado sobre o seu saco de palha, ao lado dos companheiros. De resto, bem constituído e decidido, o filho de dona Teresa era lesto na aprendizagem e, passado o primeiro ano de instrução, já se lhe adivinhava o talento para o comando. Comparavam-no muito ao pai, devido à estatura que o jovem prometia alcançar. Egas Moniz, no entanto, achava-o mais parecido com a mãe, com os seus olhos castanho-escuros, que não deixavam transparecer emoções e que, apesar disso (ou precisamente por causa disso) prendiam a atenção. Também os cabelos eram escuros, porquanto os caracóis da infância tinham dado lugar a uma cabeleira ondulada, da qual o rapaz se orgulhava tanto, que a usava comprida até ao ombro. O que, num nobre, era até apreciado. Além disso, Afonso parecia combinar em si a perspicácia da mãe com a bravura do pai. Na opinião de Egas Moniz, ele daria ainda um melhor guerreiro do que o falecido conde originário da Borgonha, pois o conde Henrique fervia em pouca água. Afonso prometia mais sangue-frio.
Com o escurecer, abatia-se uma densa neblina sobre Braga, naquele serão de fins de Novembro. Os cavalos que transportavam os mais poderosos ricos-homens de Entre Douro e Minho resfolegavam nuvens de vapor no ar húmido e frio. Chegados ao paço do arcebispo, logo os moços da estrebaria se aproximaram, a fim de tratar das montadas. Os senhores seguiram o capelão, surpreendido por tão ilustres e inesperadas visitas. À frente do cortejo, o homem segurava a lamparina de azeite, guiando os recém-chegados pelos corredores de pedra frios. Em contraste com o andar leve e silencioso do capelão, as botas dos cavaleiros troavam por sobre o soalho, os acicates tilintavam. Paio Mendes Maia recebeu-os expectante, na sua câmara privada, na qual ardia uma lareira acolhedora. Depois de uma saudação curta, e ainda antes de se terem sentado, Soeiro Mendes Sousa, o Grosso, anunciou, com a imponência do seu corpanzil: Decidimos abandonar a corte de dona Teresa! Que dizeis?, surpreendeu-se o arcebispo. Não mais pactuaremos com Fernão Peres Trava!» In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
               
Cortesia de Ésquilo/JDACT