terça-feira, 18 de setembro de 2018

Estou Nua e Agora? Francisco Salgueiro. «O que é aquilo? Teria vindo alguém do futuro? E se tivesse vindo, como seria o futuro? Sou curiosa. Saí da bicicleta e fui até lá»

jdact

São Francisco
«(…) O que é que as pessoas fazem o dia inteiro? Podem criar instalações de arte, visitar os theme camps & villages… Theme camps. O que é isso? Ia explicar de seguida se não me tivesse interrompido. Os theme camps são pequenas aldeias dedicadas a um tema. Continuando a resposta anterior, as pessoas podem andar de bicicleta, descobrirem-se a si próprias, ajudarem a comunidade, participarem em festas temáticas, verem os veículos mutantes. Veículos mutantes. O que é isso? Os mutant vehicles são carros completamente transformados que têm formas abstractas ou a forma de mobília, animais, monstros, pontes, barcos, etc. Podendo ser pequenos ou enormes. Sim, eu sei que algumas destas perguntas foram parvas, mas eu nunca tinha ouvido falar no Burning Man. Se algum dia este livro sair em versão Blu-ray, talvez inclua extras e apareçam as outras perguntas ainda mais parvas do que estas, mas que tive vergonha de escrever aqui. Vejam só esta: onde ficam as casas de banho? Oh my god, disse a Jen, logo na primeira noite, quando percebeu que não existiam casas de banho. Ouvi dizer que no final fazem uma fogueira enorme? Isso é verdade? Em todas as edições do Burning Man, há uma estátua enorme de um homem que simboliza todos nós. No final da semana, ela é queimada. Quanto tempo dura o Burning Man? Começa numa segunda-feira e vai até ao domingo seguinte. Como?! Pode repetir? Começa numa segunda-feira?! Sim. Começa hoje. Mas hoje não é domingo? Não, hoje já é segunda-feira. Vocês fizeram directa desde sábado até meio da tarde de domingo e dormiram até segunda de manhã. Fui assombrada pelo pânico. Já era segunda-feira. Eu devia estar em Nova Iorque. Tinha mandado um sms ao pai da Jen a achar que era domingo. Tinha de me ir embora já! Mas como? Só via carros a chegarem e nenhum a ir-se embora. Disse imediatamente à Jen o que estava a acontecer. Oh my god! Estamos tão lixadas! e durante os minutos seguintes só conseguiu falar em maiúsculas, ao berros com o Brian, por nos ter trazido sem nos avisar. Estava imenso calor. Encontrávamo-nos junto das caldeiras do aquecimento global. Mas o calor não estava sozinho e vinha acompanhado por dois amigos: o vento e o pó. Em poucos minutos, o meu cabelo passara de castanho a cinzento e eu parecia uma velhota. Apesar do calor poder derreter um bloco de cimento, eu não tinha tempo a perder. Precisava de encontrar uma forma de me ir embora. Emprestaram-me uma bicicleta e fui explorar as ruas da Playa, daquela comunidade temporária, perguntando permanentemente se alguém se ia embora e me poderia dar boleia. Olá.
Esta era a única resposta que eu obtinha. As pessoas pareciam hipnotizadas e só sabiam sorrir e responder isto. Eram simpáticas, mas eu precisava de me ir embora. A sua alegria era demasiado sonora e não me podia desviar do meu objectivo. As horas foram passando e, à minha volta, as pessoas abraçavam-se, pintavam, dançavam, faziam instalações de arte, e outras apenas relaxavam. Não sei bem como, porque havia diferentes músicas a serem lançadas de todos os lados, numa luta pelo domínio dos nossos ouvidos. Aos poucos, a pressão para encontrar alguém que me levasse, a mim e à Jen, para fora dali, foi sendo esmagada por tudo aquilo que eu estava a ver, e já só andava de bicicleta pelo prazer e pela descoberta daquilo que me rodeava. Subitamente, vi uma fila enorme de pessoas junto a uma senhora. Um exército de pontos de interrogação invadiu a minha cabeça. O que é aquilo? Teria vindo alguém do futuro? E se tivesse vindo, como seria o futuro? Sou curiosa. Saí da bicicleta e fui até lá. Pelo caminho, tossi umas sete vezes porque estava tanto pó no ar que os pulmões começaram a reclamar comigo. Quando me aproximei, vi uma senhora que estava a fazer uns colares fabulosos a partir de caricas.
As pessoas podem vender coisas no Burning Man? Não. O objectivo é partilharmos. Na altura, ainda não tinha chegado a esta parte da FAQ, por isso não percebi porque é que ela estava a dar aqueles colares. Isto é fabuloso, certo?, perguntou-me, em modo de afirmação, um homem que estava na fila atrás de mim. Jared, de Tucson. Começou a falar comigo como se fossemos amigos desde há quatro séculos e tivéssemos sido colegas de escola noutra encarnação». In Francisco Salgueiro, Estou Nua e Agora?, Editora Oficina do Livro, 2014, ISBN 978-989-741-159-5.
                                                      
Cortesia EOLivro/JDACT