Independência
«(…) Por Deus, não vos precipitastes? Chega de humilhações, meu
tio, anunciou Paio Soares Maia, sobrinho do arcebispo. É o galego Fernão Peres quem detém as rédeas do poder.
E como podeis defender dona Teresa, que teve o descaramento de vos mandar
prender? Por pouco tempo, sobrinho. Aqui me vedes, são e salvo, com a graça de
Deus. De Deus, ou do papa?, inquiriu o vozeirão de Soeiro Mendes. Não tivesse o
Sumo Pontífice publicado uma bula a exigir a vossa libertação, quem sabe por
quanto tempo a rainha vos manteria no calabouço? Era ponto assente que dona
Teresa, que se intitulava rainha, fora longe demais. No início, haviam
crido nela. Evitara que Coimbra caísse nas mãos dos almorávidas, a seita moura
que governava a Hispânia islâmica, denominada al-Andalus. A rainha contara, porém, com o auxílio de
cavaleiros galegos e envolvera-se em relações amorosas com os dois filhos do
conde de Trava. Era no que dava, pôr uma dona à frente dos destinos do condado
Portucalense. Deixava-se enredar em lutas e intrigas com a irmã Urraca. Tanto
se punha ao lado dela, como contra ela. Por último, tomara o partido do
arcebispo de Santiago de Compostela, quando este reclamou a jurisdição sobre as
dioceses a sul do Douro: Lamego, Viseu e Coimbra. Na verdade, o papa Calixto II
transferira para Compostela os direitos de Mérida, antiga capital da Lusitânia,
que ainda se encontrava em poder dos mouros. Paio Mendes Maia, arcebispo de
Braga, recusara-se a acatar tais ordens. Braga havia sido a capital da Galécia romana e não passava pela
cabeça do arcebispo aceitar a supremacia de Santiago de Compostela. Tinha sido
esta a razão por que dona Teresa o mandara prender.
Agora, a rainha teria de passar sem o apoio de alguns
barões portucalenses. Ali, na companhia do arcebispo de Braga, encontravam-se
os mais poderosos, os que tinham constituído o núcleo mais prestigiado da corte
do falecido conde Henrique. Além de Soeiro Mendes Sousa e Paio Soares Maia,
Egas Moniz Ribadouro viera com os seus dois irmãos, Ermígio e Mendo. E até o
galego Sancho Nunes, irmão do conde Afonso Nunes Celanova, marcava presença
naquele serão, na sua qualidade de senhor da terra de Ponte de Lima. Os
domínios dos três irmãos de Celanova estendiam-se a vastas regiões portucalenses,
não só na terra de Ponte de Lima, como na de Panóias, nas margens do Vizela e
do Corgo. A Fernão Peres Trava foi concedida a tenência de Coimbra, lançou
Soeiro Mendes Grosso,
cheio de desdenho. A maior humilhação, recordou Paio Soares Maia, é Fernão
Peres nos limitar a confirmantes de documentos, afastando-nos da peleja contra
os almorávidas. Acaso olvida ele que foram os senhores da Maia, os meus
antepassados, que conquistaram o castelo de Montemor-o-Velho, às portas de
Coimbra, numa altura em que aquelas terras ainda estavam nas mãos dos infiéis? Acrescentou,
orgulhoso: todos os meus antepassados participaram nas campanhas da Beira, comandadas por el-rei Fernando Magno, que culminou com a
conquista da própria cidade de Coimbra. E vosso pai, completou o arcebispo, o
meu falecido irmão, foi governador de Santarém, ao tempo em que essa cidade
pertencia ao imperador Afonso VI, mas que, infelizmente, voltou ao poder da
mourama.
Perderam-se em lembranças, recordaram glórias militares, ao
calor da lareira do arcebispo. Também a família de Egas Moniz se orgulhava dos
seus pergaminhos. Os Gascos, antepassados dos Ribadouro, haviam combatido os
mouros, antes da conquista de Coimbra, intervindo na ocupação do vale do Douro,
a leste da foz do rio Paiva. A indignação contra o galego Fernão Peres de Trava
crescia. Os ânimos exaltaram-se, o arcebispo acabou a bradar: pois eu, meus senhores, com a autoridade
que Deus delegou nas minhas mãos, declaro a ligação entre donaTeresa e Fernão
Peres incestuosa! Por Deus, eminência, suplicou Egas Moniz. Bem sabeis que a
nossa rainha já andou de amores com Bermudo Peres, o próprio irmão de Fernão. O
mesmo Bermudo, acrescentou Ermígio Moniz, que desposou Urraca Henriques. Dona
Teresa fez do amante o seu próprio genro!
Seguiu-se um silêncio indignado, a que o arcebispo pôs fim:
só me ocorre uma explicação: a ambição e a sede de poder cegaram dona Teresa,
impedindo-a de destrinçar o bem do mal, julgando-se acima de qualquer lei, de
Deus ou dos homens. Aonde iremos nós parar?, questionou o Grosso. Digo-vos: o herdeiro do
conde Henrique é o único com legitimidade para acabar com a supremacia de
Fernão Peres Trava! Egas e Ermígio Moniz entreolharam-se, o primeiro declarou:
não olvidemos que a mãe o chamou a si, quando ele completou os catorze anos.
Esteve em Coimbra, outorgou e subscreveu diplomas da rainha..., junto com
Fernão Peres! Pois há mister de afastá-lo dessa corte de víboras, exigiu Soeiro
Mendes. E eu sei, pelo meu irmão Gonçalo, que o mancebo promete ser um belo dum
guerreiro. É verdade, concordou Egas Moniz. Aprende lesto, seja o que for». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição
Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
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