A disputa luso-francesa pelo domínio do Brasil até 1580
Jorge Couto
«(…) As causas do insucesso da embaixada de Allesgle terão residido,
por um lado, no facto de a Coroa lusitana considerar claramente atentatória dos
seus direitos, à luz dos tratados internacionais e das bulas papais, ou seja,
da doutrina do Mare Clausum, a intromissão de navios estrangeiros nas águas e
territórios reservados a Portugal, pelo que julgava inteiramente legítimo que
as suas esquadras reprimissem os infractores. Por outro lado, a enviatura
gaulesa ocorreu na fase final das negociações com Carlos V para a resolução do
problema das Molucas, circunstância que permite formular a hipótese de João III
ter protelado propositadamente a resposta a dar ao representante da França
enquanto não estivesse definitivamente solucionado o contencioso com o
imperador. A missão de Allesgle contribuiu para que o governo joanino se
certificasse de que a França não desistiria pacificamente de disputar a
Portugal o comércio do pau-brasil e a soberania da Província de Santa Cruz. A
celebração do Acordo de Saragoça (Abril de 1529), que encerrou o conflito com a
Espanha sobre a delimitação das esferas de influência ibéricas no Pacífico,
libertou João III de uma preocupação fundamental, uma vez que estava em jogo o monopólio
do comércio das especiarias da Ásia de Sueste, e permitiu-lhe enfrentar mais
resolutamente a ameaça turca no Índico e os desafios franceses no Atlântico e
no Brasil.
O sistema de capitanias de mar e terra e a via diplomática revelaram-se
incapazes de produzir os resultados desejados, ou seja, a eliminação da presença
francesa na América do Sul. A manifesta insuficiência desse modelo para
garantir o incontestável domínio português sobre o Brasil induziu o círculo
governativo joanino a ponderar, no final da década de vinte, a adopção de
soluções mais eficazes destinadas a assegurar a soberania lusitana sobre a
totalidade do território americano que lhe pertencia de acordo com o Tratado de
Tordesilhas. No entanto, o monarca francês não lhe reconhecia legitimidade,
exigindo ironicamente que lhe mostrassem a cláusula do testamento de Adão que o
excluía da partilha do Mundo.
Uma das finalidades primordiais da expedição comandada por Martim Afonso
Sousa (1530-1532) relacionava-se com o combate à penetração francesa no Brasil.
Logo a 31 de Janeiro de 1531, a esquadra apresou uma nau nas imediações do cabo
de Percaauri (actual Pontal da Boa Vista) no litoral pernambucano. Aquela
embarcação dispunha de artilharia e tinha os porões a abarrotar de pau-brasil.
Na mesma data, foi detectada e tomada, nas proximidades da ilha de Santo Aleixo
(9º 30' S), outra nau carregada do mesmo produto. No dia 2 de Fevereiro, a
caravela então comandada por Pero Lopes Sousa abalroou e capturou, após renhido
combate, uma terceira nau, igualmente provida de canhões, munições de guerra e
grande carga de pau-brasil. Concluídas essas operações e efectuado o
reagrupamento, a arnada rumou para norte, com destino a Igaraçu, onde, em
meados de Fevereiro, tomou conhecimento de que a feitoria régía tinha sido
assaltada e saqueada, em Dezembro de 1530, por um galeão francôs, tendo o
respectivo feitor, Diogo Dias, dirigindo-se para abaía da Guanabara.
A 19 de Fevereiro de 1531, Martim Afonso decidiu queimar uma das naus
apreendidas e enviar outra a Lisboa, sob o comando de João Sousa, com os
prisioneiros franceses, 927 quintais de pau-brasil e relatórios dirigidos a João
III. No mesmo mês em que partiu de Lisboa a armada lusitana, zarpou de Marselha
La Pèlerine (antiga nau portuguesa São Tomé, pertencente ao armador
portuense André Afonso, que fora capturada por corsários franceses) com destino
ao Brasil. Tratava-se de um navio armado por Bertrand d’Ornesan, barão de
Saint-Blancard, comandante da esquadra francesa de galés no Mediterrâneo, que
pretendia fundar uma feitoria e estabelecer um núcleo de colonos no Novo Mundo
português. Já não eram apenas os homens de negócios da França atlântica,
sobretudo da Normandia e da Bretanha, que se interessavam pela Província de
Santa Cruz. Os lucros proporcionados pelo comércio dos produtos brasílicos
começavam, então, a despertar o interesse de alguns círculos navais e mercantis
da França mediterrânica, onde se localizavam os centros económicos mais dinâmicos
daquela monarquia, designadamente Lião e Marselha». In Jorge Couto, Viagens e
Viajantes no Atlântico Quinhentista, coordenação de Maria da Graça Ventura,
Edições Colibri, Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1996, ISBN
972-8288-21-2.
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