O
Primeiro Filho.
Toledo,
Castela. 23 de Agosto de 1489.
O
Filho do Ourives.
«(…)
Certamente não, pensou, horrorizado ao perceber que tinha falado estupidamente em
voz alta. É sim, meu filho. Atestado pelos que lidam com essas coisas em Roma e
enviado para nós por S. E. o cardeal Rodrigo Lancol. A mão de Espina segurando
o objecto tremeu de um modo estranho para quem, há anos, era um bom cirurgião.
Cuidadosamente, ele devolveu o osso ao padre e deixou-se cair outra vez de joelhos.
Dando rapidamente graças, juntou-se ao padre Sebastián em mais uma prece. Mais
tarde, de novo sob o sol quente do lado de fora, Espina notou que havia homens
armados nos terrenos do mosteiro, homens que não pareciam frades. Não viu o
garoto ontem à noite, enquanto ele ainda estava vivo, padre? Não vi, disse o padre
Sebastián, que também informou, finalmente, porque o mandara chamar. Este mosteiro
encomendou ao ourives Helkias um relicário moldado em ouro e prata. Devia ser
uma peça notável, com a forma de um cibório, para alojar a nossa relíquia sagrada
durante os anos que levaremos para financiar e construir uma urna adequada em
honra de Santa Ana. Os esboços do artesão eram esplêndidos, sugerindo, em cada
detalhe, que o trabalho acabado seria digno da tarefa recebida.
O garoto devia ter entregue o
relicário ontem à noite. Quando seu corpo foi encontrado, ao lado dele havia
uma bolsa de couro vazia. É possível que aqueles que o mataram sejam judeus, mas
também podem ser cristãos. Espins é um médico que tem acesso a muitos lugares e
à vida de muita gente. Cristão, mas também judeu. Queria que descobrisse a
identidade dos responsáveis. Bernardo Espina enfrentou com ressentimento a
insensível ignorância daquele clérigo, para quem um convertido era bem recebido
em que, sou talvez a última pessoa que o senhor deveria encarregar de uma
tarefa dessas, reverendo. Não importa. O padre contemplou-o com ar obstinado e
com a implacável crueza de alguém que desistira dos confortos terrenos para
apostar tudo no mundo vindouro. Vai-me encontrar esses ladrões assassinos, meu
filho. Tem de mostrar aos nossos demónios que podemos proteger-nos contra eles.
Tem de trabalhar pela sua Igreja.
A
Dádiva de Deus
O
padre Sebastián sabia que frei Júlio Pérez era um homem de fé impecável, alguém
que seria o escolhido para dirigir o mosteiro da Assunção se ele tivesse de se
afastar em virtude da morte ou de algum outro imprevisto. Contudo, o sacristão
da capela era prejudicado por uma inocência excessivamente confiante. O padre
Sebastián achava perigoso que, dos seis homens de armas, dos seis guardas de
olhar duro contratados para vigiar os perímetros do mosteiro, só três fossem
conhecidos pessoalmente por frei Júlio ou por ele próprio. O padre estava dolorosamente
consciente de que o futuro do mosteiro, assim como o seu futuro pessoal,
repousava na pequena caixa de madeira escondida na capela. A presença da relíquia
enchia-o de gratidão e renovava o seu sentimento de assombro, mas também lhe
aumentava a ansiedade, pois tê-la sob a sua guarda era ao mesmo tempo uma
grande honra e uma terrível responsabilidade. Quando menino em Valência, com
pouco mais de doze anos, Sebastián Alvarez vira alguma coisa na superfície
polida de um cântaro de cerâmica preta. A visão, porque ele sabia que era isso,
ocorreu-lhe no meio de uma noite assustadora, quando acordou no quarto que
compartilhava com os irmãos, Augustin e Juan António. Ao contemplar a cerâmica
preta sob a luz da lua que entrava no aposento, viu o próprio Senhor Jesus crucificado.
Tanto a imagem do Senhor quanto a cruz estavam embaçadas e não mostravam
detalhes. Depois da visão, ele tornou a mergulhar num sono doce e aconchegante;
quando despertou de manhã, a visão desaparecera, mas a lembrança do que havia
visto continuava perfeitamente clara na sua mente. Nunca revelou a ninguém ter
sido escolhido por Deus para receber uma visão. Os irmãos mais velhos iam
zombar e dizer que ele vira o dragão da lua reflectido no cântaro. O pai, um
barão que achava que a sua linhagem e as suas terras lhe davam o direito de ser
uma besta grosseira, lhe teria batido por querer fazer os outros de bobo. A mãe
era uma figura anulada; vivia com medo do marido e raramente falava com os
filhos.
Mas após a noite da visão, esteve
sempre claro para Sebastián o papel que lhe estava reservado na vida. Logo, ele
demonstrou uma piedade, que tornou fácil para a família encaixá-lo no serviço da
Igreja. Após a ordenação, o padre contentou-se em servir humildemente em várias
funções sem importância. Só no sexto ano após a ordenação, ele seria ajudado pela
crescente importância do irmão Juan António. Augustin herdara o título e as
terras em Valência, mas Juan António fizera um excelente casamento em Toledo e
a família da esposa, os poderosos Bórgia, conseguiram que Sebastián fosse
indicado para a Sé de Toledo. Sebastián foi nomeado capelão de um novo mosteiro
jeronimita e assistente do seu prior, padre Jerónimo Degas». In
Noah Gordon, O Ùltimo Judeu, Uma História de Terror na Inquisição, Editora
Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.
Cortesia de ERocco/BertrandE/JDACT