sexta-feira, 7 de setembro de 2018

O Mercador de Livros Malditos. Marcello Simoni. «A basílica de São Marcos destacava-se majestosa na praça, entre o palácio do doge e as barracas do mercado»

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«(…) O relato de Ginesio e Hulco era verídico: Ignazio confiara o seu baú a Gualimberto para que este o escondesse na biblioteca até ele voltar. O abade pousou a lanterna no chão e brandiu o pesado martelo que levara consigo. Bastaram alguns golpes e o cadeado cedeu. Largou a ferramenta, abriu a tampa e aproximou a lanterna. Finalmente ia descobrir os segredos de Ignazio, os mistérios que ele outrora, não havia dúvida, revelara a Maynulfo Silvacandida. O baú não continha nem dinheiro nem joias, apenas um punhado de livros. O abade retirou-os para examiná-los metodicamente, um por um, passando um olhar inquisitivo pelos títulos. Com espanto e desdém, reconheceu De scientia astrorum, de Alfrango, De quindecim stellis, de Messahalla, Liber de spatula, de Hermes Trismegisto, e Centiloquium, de Abu Masar. Havia muitos outros textos compilados em árabe e que ele não conhecia. Viu naquelas páginas hieróglifos de significado oculto e imagens pintadas com cores berrantes, quase violentas. Então era verdade tudo o que se dizia de Ignazio! Ele era mesmo um necromante! E se Rainerio ainda podia nutrir alguma dúvida, o conteúdo de um embrulho colocado no fundo do baú logo a dissipou. O abade abriu o embrulho e, depois de persignar-se várias vezes, tirou de lá uma estatueta de ouro. Nunca tinha visto coisa igual. Tratava-se de um ídolo: um homem barbudo com quatro braços. Ostentava uma coroa decorada com cabeças de animais, o falo erecto como o de um sátiro e seis asas emplumadas, inteiramente cobertas de olhos.
Uma inscrição ao pé do ídolo rezava: hor dos múltiplos olhos, semelhante aos anjos querubins. Mas as pupilas de Rainerio viam algo mais que querubins. Na sua mente retumbavam as advertências dos padres da Igreja, condenando os ídolos pagãos identificados com demónios. Aquelas divindades eram emissárias de Satã e a sua impureza tornava-as frias e pesadas, portanto, sujeitas à atracção lunar. Ocultavam-se nas trevas, incapazes de voar para junto dos coros celestiais, e passavam a vida deslizando entre as nuvens e as ondas do mar como névoa tangida pelo vento, sempre prejudicando os homens. Tais pensamentos deixavam Rainerio apavorado, porém mais forte ainda era o ódio que nutria contra Ignazio. Um ódio repassado de temor, como o de alguém diante do desconhecido. Mesmo assim, não parou; continuou a vasculhar o baú. Retirou um maço de cartas atadas por uma tira de couro, a correspondência do mercador, e examinou o seu conteúdo. Eram na maior parte cartas provenientes de Veneza, Nápoles e várias cidades da Espanha. Uma delas era de data recente, a segunda-feira anterior, três dias antes da partida de Ignazio, Willalme e Uberto. O seu conteúdo estava em poucas linhas: In nomine Domini, anno 1218, mensis maii 14 Mestre Ignazio, recebi a carta que me enviou há alguns dias da abadia de Pomposa. Agradeço a presteza com que respondeu ao meu apelo. O encontro está marcado para o próximo domingo na basílica de São Marcos, após a missa da manhã.

A Filosofia Oculta
Isto é verdadeiro, sem falsidade, seguro, o mais verdadeiro que possa haver: o que está em cima é igual ao que está em baixo e o que está em baixo é igual ao que está em cima, para cumprir os milagres da Coisa Una. Hermes Trismegisto, Tabula smeraldina. A basílica de São Marcos destacava-se majestosa na praça, entre o palácio do doge e as barracas do mercado. Era um edifício imponente, em forma de cruz e com cinco cúpulas. Uberto admirou os mármores, as colunas e os capitéis dispostos com elegância e equilíbrio, que conferiam ao conjunto um ritmo ascensional e ao mesmo tempo estático. Pena que o lado ocidental da basílica estivesse em fase de restauração, inteiramente coberto de andaimes». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.

Cortesia CAutor/JDACT