«(…) O relato de Ginesio e Hulco era verídico: Ignazio confiara o
seu baú a Gualimberto para que este o escondesse na biblioteca até ele voltar. O
abade pousou a lanterna no chão e brandiu o pesado martelo que levara consigo. Bastaram
alguns golpes e o cadeado cedeu. Largou a ferramenta, abriu a tampa e aproximou
a lanterna. Finalmente ia descobrir os segredos de Ignazio, os mistérios que
ele outrora, não havia dúvida, revelara a Maynulfo Silvacandida. O baú não
continha nem dinheiro nem joias, apenas um punhado de livros. O abade retirou-os
para examiná-los metodicamente, um por um, passando um olhar inquisitivo pelos
títulos. Com espanto e desdém, reconheceu De scientia astrorum, de Alfrango, De quindecim stellis, de Messahalla, Liber de spatula, de Hermes
Trismegisto, e Centiloquium,
de Abu Masar. Havia muitos outros textos compilados em árabe e que ele não
conhecia. Viu naquelas páginas hieróglifos de significado oculto e imagens
pintadas com cores berrantes, quase violentas. Então era verdade tudo o que se
dizia de Ignazio! Ele era mesmo um necromante! E se Rainerio ainda podia nutrir
alguma dúvida, o conteúdo de um embrulho colocado no fundo do baú logo a
dissipou. O abade abriu o embrulho e, depois de persignar-se várias vezes, tirou
de lá uma estatueta de ouro. Nunca tinha visto coisa igual. Tratava-se de um
ídolo: um homem barbudo com quatro braços. Ostentava uma coroa decorada com
cabeças de animais, o falo erecto como o de um sátiro e seis asas emplumadas, inteiramente cobertas de olhos.
Uma inscrição ao pé do ídolo rezava: hor dos múltiplos
olhos, semelhante aos anjos querubins. Mas as pupilas de Rainerio viam algo
mais que querubins. Na sua mente retumbavam as advertências dos padres da
Igreja, condenando os ídolos pagãos identificados com demónios. Aquelas
divindades eram emissárias de Satã e a sua impureza tornava-as frias e pesadas,
portanto, sujeitas à atracção lunar. Ocultavam-se nas trevas, incapazes de voar
para junto dos coros celestiais, e passavam a vida deslizando entre as nuvens e
as ondas do mar como névoa tangida pelo vento, sempre prejudicando os homens. Tais
pensamentos deixavam Rainerio apavorado, porém mais forte ainda era o ódio que nutria
contra Ignazio. Um ódio repassado de temor, como o de alguém diante do desconhecido.
Mesmo assim, não parou; continuou a vasculhar o baú. Retirou um maço de cartas
atadas por uma tira de couro, a correspondência do mercador, e examinou o seu
conteúdo. Eram na maior parte cartas provenientes de Veneza, Nápoles e várias
cidades da Espanha. Uma delas era de data recente, a segunda-feira anterior,
três dias antes da partida de Ignazio, Willalme e Uberto. O seu conteúdo estava
em poucas linhas: In nomine Domini,
anno 1218, mensis maii 14 Mestre
Ignazio, recebi a carta que me enviou há alguns dias da abadia de Pomposa. Agradeço
a presteza com que respondeu ao meu apelo. O encontro está marcado para o
próximo domingo na basílica de São Marcos, após a missa da manhã.
A
Filosofia Oculta
Isto é verdadeiro, sem falsidade, seguro, o mais verdadeiro que
possa haver: o que está em cima é igual ao que está em baixo e o que está em baixo
é igual ao que está em cima, para cumprir os milagres da Coisa Una. Hermes
Trismegisto, Tabula smeraldina. A basílica de São Marcos
destacava-se majestosa na praça, entre o palácio do doge e as barracas do
mercado. Era um edifício imponente, em forma de cruz e com cinco cúpulas. Uberto
admirou os mármores, as colunas e os capitéis dispostos com elegância e
equilíbrio, que conferiam ao conjunto um ritmo ascensional e ao mesmo tempo
estático. Pena que o lado ocidental da basílica estivesse em fase de
restauração, inteiramente coberto de andaimes». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros
Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012,
ISBN 978-989-224-029-4.
Cortesia CAutor/JDACT