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Independência
«(…)
Carregar com um lorigão um dia inteiro dá cabo dos
costados, disse o jovem Afonso Viegas ao seu amigo e quase irmão Afonso
Henriques, que cavalgava ao lado dele. Deitas-te à noite com a impressão de que
não tens ossos no corpo. Que novidade me dás, replicou, irónico, o filho de dona
Teresa, que não queria dar parte de ignorante. A loriga pesa mais de vinte
arráteis. Pois acrescenta-lhe o peso da lança, do machado, da maça, da espada e
do escudo, completou Lourenço Viegas, também ele a cavalo. Tudo isso hás mister
de carregar, quando te fazes à batalha. Pode-se dar o caso, atalhou Afonso
Viegas, de não te sobrar nenhuma mão para as rédeas. Já guias a montada só com
os joelhos?, perguntou o filho de Teresa a Lourenço, o mais velho dos três. Estás
a caçoar? Pois, olha! Os dois refrearam os seus cavalos e observaram Lourenço
que, com os braços cruzados sobre o peito, afastou-se deles a galope. Depois de
uns vinte passos, fez a montada virar para trás, cavalgou de novo ao encontro
deles e freou o animal na altura certa.
Afonso Henriques mal podia esperar para igualmente iniciar
a sua formação de cavaleiro. Completara os treze anos e já o entediava a
companhia dos filhos mais novos de Egas Moniz. Alegrara-o que os dois rebentos
do primeiro casamento do senhor de Ribadouro viessem passar o estio com a família,
no Paço de Britiande, perto do mosteiro de Cárquere. Lourenço Viegas ia nos
dezassete e Afonso Viegas, a quem haviam dado a alcunha de Moço, completara quinze. O Aio de
Afonso Henriques, ou seja, o rico-homem encarregue da sua educação, era, na verdade,
Ermígio Moniz, o mais velho dos irmãos de Ribadouro. Depois da morte do conde Henrique,
o pequeno Afonso mudara-se para o
castelo de Faria, junto ao rio Cávado. Ermígio Moniz, porém, não tinha filhos,
ao contrário do irmão Egas. E Afonso acostumou-se a passar temporadas no paço
de Britiande, nas encostas da serra de Montemuro que desciam para Resende.
Assim se viu o rapaz, não com um, mas com dois Aios, que não desiludiram a sua
fé de criança, pois ambos se revelaram carinhosos. Os três rapazes encetaram o
seu trote descontraído na encosta sobranceira ao Douro. Uns trinta pés mais
abaixo, deslizava o rio, preguiçoso. Que calor, queixou-se Lourenço, desviando
a repa castanha e lisa que se lhe colava à testa. Repousemos à sombra de um
destes castanheiros!
Desmontaram e, enquanto amarravam os cavalos a uma das
árvores, Afonso, cujo entusiasmo pelas artes da guerra o incitava a insistir no
assunto, opinou: com um tempo destes ainda é mais custoso carregar com o
armamento. Se é, replicou o Moço.
As argolas de ferro do lorigão começam
a aquecer e... Um assobio prolongado do irmão mais velho interrompeu-lhe a
frase. Os dois olharam assobacados para Lourenço, que, baixando a voz,
perguntou: vós já vistes o que para ali vai? Afonso apercebeu-se de risadas e
guinchos vindos do lado do rio. Perto de um banco de areia, que formava uma
pequena enseada, brincavam cinco cachopas dentro da água. Eram lavadeiras,
havia roupa a corar ao sol. E Afonso deu-se consigo a perguntar porque
levantavam elas as saias para não as molhar, já que lançavam água umas às
outras. Ainda não deram connosco, acrescentou Lourenço, a meia voz. Aproximemo-nos
sorrateiros! Não querias repousar aqui à sombra?, retorquiu Afonso. Lourenço
abanou a cabeça, enquanto dava estalinhos com a língua: valha-te Deus, rapaz!
Já vai sendo tempo de aprenderes o que é a vida. Não faças perguntas e obedece,
por esta vez, às minhas ordens.
De arbusto em arbusto, lá chegaram despercebidos à beira da
pequena enseada. Acocoraram-se atrás de uma giesta e Afonso Viegas Moço sussurrou: não sabia que havia cachopas tão
formosas por estas paragens. Duas delas não passam de garotas, cochichou
Lourenço. Mas sobram as outras três, uma para cada um. Já reparastes nos
cabelos daquela de peitos avantajados? - Julguei que as ruivas fossem de evitar,
sentenciou o Moço. Não
se diz por aí que são bruxas? O irmão fez um gesto de impaciência com a mão: quero
lá saber. Só de ver como os cabelos dela ardem como brasas ao sol, pousou a mão
entre as pernas, já se me incendeia o pau. Também Afonso sentiu o fogo atear-se
dentro das bragas. Mas recordou que o arcebispo de Braga, Paio Mendes Maia, se
fartava de pregar contra a luxúria da carne, comandada pelo demo. Tais
advertências, porém, pareciam não apoquentar Lourenço e o Moço. Pelos vistos, uma vida
gloriosa de cavaleiro não era a única ambição de um homem que se prezasse... A
ruiva é para mim, avisou Lourenço, que, como mais velho, se sentia no direito
de escolher. Já vistes como ela levanta as saias mais alto do que as outras? E
tem cá umas pernas, sibilou o Moço
aos ouvidos de Afonso». In
Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN
978-989-809-249-6.
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