sábado, 15 de setembro de 2018

Afonso Henriques. O Homem. Cristina Torrão. «Afonso Henriques mal podia esperar para igualmente iniciar a sua formação de cavaleiro. Completara os treze anos e já o entediava a companhia dos filhos mais novos de Egas Moniz»

jdact e wikipedia

Independência
«(…) Carregar com um lorigão um dia inteiro dá cabo dos costados, disse o jovem Afonso Viegas ao seu amigo e quase irmão Afonso Henriques, que cavalgava ao lado dele. Deitas-te à noite com a impressão de que não tens ossos no corpo. Que novidade me dás, replicou, irónico, o filho de dona Teresa, que não queria dar parte de ignorante. A loriga pesa mais de vinte arráteis. Pois acrescenta-lhe o peso da lança, do machado, da maça, da espada e do escudo, completou Lourenço Viegas, também ele a cavalo. Tudo isso hás mister de carregar, quando te fazes à batalha. Pode-se dar o caso, atalhou Afonso Viegas, de não te sobrar nenhuma mão para as rédeas. Já guias a montada só com os joelhos?, perguntou o filho de Teresa a Lourenço, o mais velho dos três. Estás a caçoar? Pois, olha! Os dois refrearam os seus cavalos e observaram Lourenço que, com os braços cruzados sobre o peito, afastou-se deles a galope. Depois de uns vinte passos, fez a montada virar para trás, cavalgou de novo ao encontro deles e freou o animal na altura certa.
Afonso Henriques mal podia esperar para igualmente iniciar a sua formação de cavaleiro. Completara os treze anos e já o entediava a companhia dos filhos mais novos de Egas Moniz. Alegrara-o que os dois rebentos do primeiro casamento do senhor de Ribadouro viessem passar o estio com a família, no Paço de Britiande, perto do mosteiro de Cárquere. Lourenço Viegas ia nos dezassete e Afonso Viegas, a quem haviam dado a alcunha de Moço, completara quinze. O Aio de Afonso Henriques, ou seja, o rico-homem encarregue da sua educação, era, na verdade, Ermígio Moniz, o mais velho dos irmãos de Ribadouro. Depois da morte do conde Henrique, o pequeno Afonso mudara-se para o castelo de Faria, junto ao rio Cávado. Ermígio Moniz, porém, não tinha filhos, ao contrário do irmão Egas. E Afonso acostumou-se a passar temporadas no paço de Britiande, nas encostas da serra de Montemuro que desciam para Resende. Assim se viu o rapaz, não com um, mas com dois Aios, que não desiludiram a sua fé de criança, pois ambos se revelaram carinhosos. Os três rapazes encetaram o seu trote descontraído na encosta sobranceira ao Douro. Uns trinta pés mais abaixo, deslizava o rio, preguiçoso. Que calor, queixou-se Lourenço, desviando a repa castanha e lisa que se lhe colava à testa. Repousemos à sombra de um destes castanheiros!
Desmontaram e, enquanto amarravam os cavalos a uma das árvores, Afonso, cujo entusiasmo pelas artes da guerra o incitava a insistir no assunto, opinou: com um tempo destes ainda é mais custoso carregar com o armamento. Se é, replicou o Moço. As argolas de ferro do lorigão começam a aquecer e... Um assobio prolongado do irmão mais velho interrompeu-lhe a frase. Os dois olharam assobacados para Lourenço, que, baixando a voz, perguntou: vós já vistes o que para ali vai? Afonso apercebeu-se de risadas e guinchos vindos do lado do rio. Perto de um banco de areia, que formava uma pequena enseada, brincavam cinco cachopas dentro da água. Eram lavadeiras, havia roupa a corar ao sol. E Afonso deu-se consigo a perguntar porque levantavam elas as saias para não as molhar, já que lançavam água umas às outras. Ainda não deram connosco, acrescentou Lourenço, a meia voz. Aproximemo-nos sorrateiros! Não querias repousar aqui à sombra?, retorquiu Afonso. Lourenço abanou a cabeça, enquanto dava estalinhos com a língua: valha-te Deus, rapaz! Já vai sendo tempo de aprenderes o que é a vida. Não faças perguntas e obedece, por esta vez, às minhas ordens.
De arbusto em arbusto, lá chegaram despercebidos à beira da pequena enseada. Acocoraram-se atrás de uma giesta e Afonso Viegas Moço sussurrou: não sabia que havia cachopas tão formosas por estas paragens. Duas delas não passam de garotas, cochichou Lourenço. Mas sobram as outras três, uma para cada um. Já reparastes nos cabelos daquela de peitos avantajados? - Julguei que as ruivas fossem de evitar, sentenciou o Moço. Não se diz por aí que são bruxas? O irmão fez um gesto de impaciência com a mão: quero lá saber. Só de ver como os cabelos dela ardem como brasas ao sol, pousou a mão entre as pernas, já se me incendeia o pau. Também Afonso sentiu o fogo atear-se dentro das bragas. Mas recordou que o arcebispo de Braga, Paio Mendes Maia, se fartava de pregar contra a luxúria da carne, comandada pelo demo. Tais advertências, porém, pareciam não apoquentar Lourenço e o Moço. Pelos vistos, uma vida gloriosa de cavaleiro não era a única ambição de um homem que se prezasse... A ruiva é para mim, avisou Lourenço, que, como mais velho, se sentia no direito de escolher. Já vistes como ela levanta as saias mais alto do que as outras? E tem cá umas pernas, sibilou o Moço aos ouvidos de Afonso». In Cristina Torrão, Afonso Henriques, O Homem, Edição Ésquilo, 2008, ISBN 978-989-809-249-6.
               
Cortesia de Ésquilo/JDACT