domingo, 9 de setembro de 2018

A Religiosa. Denis Diderot. «Não esqueço que fui eu quem a persuadiu a dar os primeiros passos; e não consinto que se abuse disso para a comprometer para além da sua vontade. Vamos examinar isto juntas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Entretanto, aproximava-se o momento que os meus desejos iam adiando. Tornei-me pensativa e senti que as minhas repugnâncias despertavam e cresciam, e ia confessá-las à superiora ou à nossa mestra de noviças. Estas mulheres vingam-se enormemente do incómodo que lhes causamos, pois não é de crer que as divirta o hipócrito papel que representam nem as patetices que se vêem forçadas a repetir-nos; acaba por ser algo penoso e desagradável para elas. Mas decidem-se a fazê-lo por um milhar de escudos que entra na sua casa. Está aqui o importante propósito pelo qual mentem durante toda a vida e encaminham as jovens inocentes para um desespero de quarenta ou cinquenta anos, e talvez para a desgraça eterna; porque é certo, senhor, que de cem religiosas que morrem antes dos cinquenta anos, exactamente, cem se condenam, sem contar com as que ficam loucas, estúpidas ou furiosas, até esse momento.
Chegou o dia em que uma destas últimas se lhes escapou da cela onde estava fechada. Eu vi-a. A minha felicidade ou a minha desgraça dependem, senhor, da forma como puder sofrer comigo, porque nunca vi nada tão horrível. Estava desgrenhada e quase nua; arrastava correntes de ferro; os olhos esbugalhados; arrancava cabelos; dava murros no peito, corria, uivava; atirava imprecações terríveis sobre si mesma e sobre as outras; procurava uma janela para se atirar. Deixei-me levar pelo assombro e todos os meus membros tremiam. Vi a minha própria sorte naquela infeliz mulher, e ali mesmo decidi, em segredo, que morreria mil vezes antes de me expor a tal coisa. Pressentiram o efeito que este acontecimento podia causar no meu espírito e acreditaram em que era um dever preveni-lo. Contaram-me, sobre esta religiosa, não sei quantas mentiras ridículas que se contradiziam: que já estava transtornada quando ali entrou; que tinha experimentado um grande terror, numa época crítica; que era dada a visões; que acreditava estar em contacto com os anjos; que as suas leituras perniciosas lhe tinham feito mal ao espírito; que tinha dado ouvidos a inovadores de uma moral exagerada, que lhe tinham infundido um tal medo pelos juízos de Deus que a sua razão, vacilante, se tinha transtornado e só via demónios, o inferno e fogo; que elas eram muito infelizes; que tal coisa era inédita no convento, e não sei que mais. Não acreditei em nada do que me disseram. A todo o momento estava presente no meu espírito a religiosa louca e renovava a promessa de não fazer os votos.
E, no entanto, chegou o momento em que tinha de provar que era capaz de manter a minha palavra. Uma manhã, depois da missa, vi entrar a superiora na minha cela. Trazia uma carta. A tristeza e o abatimento reflectiam-se no seu semblante; trazia os braços caídos e parecia que a sua mão não tinha força para levantar a carta. Olhava-me e parecia que as lágrimas lhe afloravam os olhos; estávamos ambas em silêncio; ela esperava que eu falasse primeiro. Senti-me tentada a fazê-lo, mas contive-me. Perguntou-me como é que me sentia; disse-me que a missa tinha sido muito longa naquele dia, que eu tinha tossido um pouco, que parecia indisposta. A tudo aquilo respondi: não, querida madre. Mantinha a carta na mão caída e, no meio destas perguntas, pô-la sobre os joelhos e ocultou-a, em parte, com a mão. Finalmente, depois de alguns rodeios e perguntas sobre o meu pai e a minha mãe, e vendo que eu não lhe perguntava o que era aquele papel, disse-me: tenho aqui uma carta...
Quando ouvi estas palavras senti perturbar-se-me o coração e disse, com voz entrecortada e os lábios a tremer: é da minha mãe? Assim é; tome e leia... Tranquilizei-me um pouco, peguei na carta e comecei a lê-la com firmeza; mas, à medida que avançava, a surpresa, a indignação, a cólera, o despeito, diferentes paixões sucediam-se em mim e eu falava com vozes diversas, adoptava vários semblantes e fazia movimentos distintos. Às vezes, quase não podia sustentar o papel, outras, pegava nele como se o quisesse rasgar ou apertava-o violentamente como se quisesse amachucá-lo e atirá-lo para longe de mim. Pois bem, minha filha, que respondemos a isto? Bem sabe, senhora. Não, não sei. Os tempos que correm são adversos e a sua família sofreu grandes perdas; os negócios das suas irmãs não correm bem e tanto uma como outra têm muitos filhos; casá-las significou a pobreza e mantê-las é a ruína. É impossível darem-lhe um dote a si; quando tomou o hábito isso trouxe alguns gastos. Ao dar esse passo alimentou esperanças, e o rumor de que vai professar espalhou-se por todo o lado. Apesar de tudo, conte sempre com todo o meu apoio. Nunca atraí ninguém para a vida religiosa; é um estado para que Deus nos chama, e é perigoso misturar a nossa voz com a Dele. Não tenho intenção de lhe falar ao coração se a graça ainda o não o fez. Até hoje não posso acusar-me de ter feito a desgraça de ninguém; ia começar consigo, minha filha, que me é tão querida? Não esqueço que fui eu quem a persuadiu a dar os primeiros passos; e não consinto que se abuse disso para a comprometer para além da sua vontade. Vamos examinar isto juntas e pôr-mo-nos de acordo. Quer professar?» In Denis Diderot, A Religiosa, 1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN: 978-852-730-878-6.

Cortesia de E Perspectiva/JDACT