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de wikipedia e jdact
«(…)
Entretanto, aproximava-se o momento que os meus desejos iam adiando. Tornei-me
pensativa e senti que as minhas repugnâncias despertavam e cresciam, e ia
confessá-las à superiora ou à nossa mestra de noviças. Estas mulheres vingam-se
enormemente do incómodo que lhes causamos, pois não é de crer que as divirta o
hipócrito papel que representam nem as patetices que se vêem forçadas a
repetir-nos; acaba por ser algo penoso e desagradável para elas. Mas decidem-se
a fazê-lo por um milhar de escudos que entra na sua casa. Está aqui o
importante propósito pelo qual mentem durante toda a vida e encaminham as
jovens inocentes para um desespero de quarenta ou cinquenta anos, e talvez para
a desgraça eterna; porque é certo, senhor, que de cem religiosas que morrem
antes dos cinquenta anos, exactamente, cem se condenam, sem contar com as que
ficam loucas, estúpidas ou furiosas, até esse momento.
Chegou
o dia em que uma destas últimas se lhes escapou da cela onde estava fechada. Eu
vi-a. A minha felicidade ou a minha desgraça dependem, senhor, da forma como
puder sofrer comigo, porque nunca vi nada tão horrível. Estava desgrenhada e
quase nua; arrastava correntes de ferro; os olhos esbugalhados; arrancava
cabelos; dava murros no peito, corria, uivava; atirava imprecações terríveis
sobre si mesma e sobre as outras; procurava uma janela para se atirar.
Deixei-me levar pelo assombro e todos os meus membros tremiam. Vi a minha
própria sorte naquela infeliz mulher, e ali mesmo decidi, em segredo, que
morreria mil vezes antes de me expor a tal coisa. Pressentiram o efeito que
este acontecimento podia causar no meu espírito e acreditaram em que era um
dever preveni-lo. Contaram-me, sobre esta religiosa, não sei quantas mentiras
ridículas que se contradiziam: que já estava transtornada quando ali entrou;
que tinha experimentado um grande terror, numa época crítica; que era dada a
visões; que acreditava estar em contacto com os anjos; que as suas leituras
perniciosas lhe tinham feito mal ao espírito; que tinha dado ouvidos a
inovadores de uma moral exagerada, que lhe tinham infundido um tal medo pelos
juízos de Deus que a sua razão, vacilante, se tinha transtornado e só via
demónios, o inferno e fogo; que elas eram muito infelizes; que tal coisa era
inédita no convento, e não sei que mais. Não acreditei em nada do que me
disseram. A todo o momento estava presente no meu espírito a religiosa louca e
renovava a promessa de não fazer os votos.
E, no
entanto, chegou o momento em que tinha de provar que era capaz de manter a
minha palavra. Uma manhã, depois da missa, vi entrar a superiora na minha cela.
Trazia uma carta. A tristeza e o abatimento reflectiam-se no seu semblante;
trazia os braços caídos e parecia que a sua mão não tinha força para levantar a
carta. Olhava-me e parecia que as lágrimas lhe afloravam os olhos; estávamos
ambas em silêncio; ela esperava que eu falasse primeiro. Senti-me tentada a
fazê-lo, mas contive-me. Perguntou-me como é que me sentia; disse-me que a
missa tinha sido muito longa naquele dia, que eu tinha tossido um pouco, que
parecia indisposta. A tudo aquilo respondi: não, querida madre. Mantinha a
carta na mão caída e, no meio destas perguntas, pô-la sobre os joelhos e
ocultou-a, em parte, com a mão. Finalmente, depois de alguns rodeios e
perguntas sobre o meu pai e a minha mãe, e vendo que eu não lhe perguntava o que
era aquele papel, disse-me: tenho aqui uma carta...
Quando
ouvi estas palavras senti perturbar-se-me o coração e disse, com voz entrecortada e os lábios a tremer: é da minha mãe? Assim é; tome e leia... Tranquilizei-me
um pouco, peguei na carta e comecei a lê-la com firmeza; mas, à medida que
avançava, a surpresa, a indignação, a cólera, o despeito, diferentes paixões
sucediam-se em mim e eu falava com vozes diversas, adoptava vários semblantes e
fazia movimentos distintos. Às vezes, quase não podia sustentar o papel,
outras, pegava nele como se o quisesse rasgar ou apertava-o violentamente como
se quisesse amachucá-lo e atirá-lo para longe de mim. Pois bem, minha filha,
que respondemos a isto? Bem sabe, senhora. Não, não sei. Os tempos que correm
são adversos e a sua família sofreu grandes perdas; os negócios das suas irmãs
não correm bem e tanto uma como outra têm muitos filhos; casá-las significou a
pobreza e mantê-las é a ruína. É impossível darem-lhe um dote a si; quando
tomou o hábito isso trouxe alguns gastos. Ao dar esse passo alimentou
esperanças, e o rumor de que vai professar espalhou-se por todo o lado. Apesar
de tudo, conte sempre com todo o meu apoio. Nunca atraí ninguém para a vida
religiosa; é um estado para que Deus nos chama, e é perigoso misturar a nossa
voz com a Dele. Não tenho intenção de lhe falar ao coração se a graça ainda o
não o fez. Até hoje não posso acusar-me de ter feito a desgraça de ninguém; ia
começar consigo, minha filha, que me é tão querida? Não esqueço que fui eu quem
a persuadiu a dar os primeiros passos; e não consinto que se abuse disso para a
comprometer para além da sua vontade. Vamos examinar isto juntas e pôr-mo-nos
de acordo. Quer professar?»
In
Denis Diderot, A Religiosa, 1796, tradução de J. Guinsburg, Editora Perspectiva, 2009, ISBN: 978-852-730-878-6.
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