quarta-feira, 12 de setembro de 2018

As Palavras e as Coisas. Michel Foucault. «Ponto duvidoso, pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E essa luz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no interstício da moldura; e de lá ela alcança afronte, as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mãos a palheta e, na outra, o fino pincel... Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre. Essa abertura não é mais, como no fundo, uma porta que se abriu; é a própria amplitude do quadro, e os olhares que por ela passam não são de um visitante longínquo. O friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro representa, se se incluir o pintor, oito personagens. Cinco delas, a cabeça mais ou menos inclinada, virada ou abaixada, olham na direcção perpendicular do quadro. O centro do grupo é ocupado pela pequena infanta, com o seu amplo vestido cinza e rosa. A princesa vira a cabeça para a direita do quadro, enquanto o seu busto e os grandes folhos do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; o olhar, porém, dirige-se aprumado na direcção do espectador que se acha em face do quadro. Uma linha mediana que dividisse a tela em duas alas iguais passaria entre os dois olhos da criança. O seu rosto está a um terço da altura total do quadro. De sorte que aí reside, sem dúvida, o tema principal da composição; aí, o objecto mesmo dessa pintura. Como que para prová-lo e melhor sublinhá-lo, o autor recorreu a uma figura tradicional: ao lado da personagem principal, colocou outra, ajoelhada, que a olha.
Como um ofertante em prece, como o Anjo saudando a Virgem, uma governanta de joelhos estende as mãos para a princesa. O seu rosto recorta-se num perfil perfeito. Está à altura do da criança. A aia olha para a princesa e só para ela. Um pouco mais à direita, outra dama de honor, voltada também para a infanta, ligeiramente inclinada acima dela, mas com os olhos claramente dirigidos para a frente, lá onde já olham o pintor e a princesa. Enfim, dois grupos de duas personagens: um, em recuo; outro, composto de anões, no primeiro plano. Em cada par, uma personagem olha em frente, a outra à direita ou à esquerda. Pela sua posição e pela sua proporção, esses dois grupos se correspondem e se emparelham: atrás, os cortesãos (a mulher, à esquerda, olha para a direita); à frente, os anões (o rapaz que está na extremidade direita olha para o interior do quadro). Esse conjunto de personagens assim dispostas pode constituir, conforme a atenção que se dê ao quadro ou o centro de referência que se escolha, duas figuras. Uma seria um grande X; no ponto superior esquerdo estaria o olhar do pintor e, à direita, o do cortesão; na ponta inferior, do lado esquerdo, está o canto da tela representada de costas (mais exatamente, o pé do cavalete); do lado direito, o anão (com o calçado deposto sobre o dorso do cão). No cruzamento dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infanta. A outra figura seria antes a de uma vasta curva; as suas duas pontas seriam determinadas pelo pintor à esquerda e pelo cortesão à direita, extremidades altas e recuadas; o recôncavo, bem mais aproximado, coincidiria com o rosto da princesa e com o olhar que a aia lhe dirige. Essa ténue linha desenha uma concha que, ao mesmo tempo, encerra e libera, no meio do quadro, a localização do espelho.
Há, pois, dois centros que podem organizar o quadro, conforme a atenção do espectador divague e se prenda aqui ou ali. A princesa mantém-se de pé no meio de uma cruz de Santo André, que gira em torno dela com o turbilhão dos cortesãos, damas de honor, animais e bufões. Mas essa rotação é fixa. Fixa por um espectáculo que seria absolutamente invisível se essas mesmas personagens, subitamente imóveis, não oferecessem, como que no vão de uma taça, a possibilidade de olhar no fundo de um espelho, o dúplice imprevisto de sua contemplação. No sentido da profundidade, a princesa se superpor ao espelho; no da altura, é o reflexo que se superpõe ao rosto. Mas a perspectiva torna-os muito próximos um do outro. Ora, cada um deles emana uma linha inevitável; uma, saída do espelho, transpõe toda a espessura representada (e mesmo além dela, já que o espelho perfura a parede do fundo e faz nascer atrás dela um outro espaço); a outra é mais curta; vem do olhar da criança e só atravessa o primeiro plano. Essas duas linhas sagitais são convergentes, segundo um ângulo muito agudo, e o ponto do seu encontro, saindo da tela, se fixa à frente do quadro, mais ou menos lá de onde o olhamos. Ponto duvidoso, pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros pontilhados adjacentes que nascem do quadro e que também dele escapam». In Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN 853-360-997-3.

Cortesia de LMFontesE/JDACT