«(…) O aparecimento dos períodos
longos na história de hoje não é um retorno às filosofias da história, às
grandes eras do mundo, ou às fases prescritas pelo destino das civilizações; é
o efeito da elaboração, metodologicamente organizada, das séries. Ora, na
história das ideias, do pensamento e das ciências, a mesma mutação provocou um
efeito inverso: dissociou a longa série constituída pelo progresso da
consciência, ou a teleologia da razão, ou a evolução do pensamento humano; pôs
em questão, novamente, os temas da convergência e da realização; colocou em dúvida
as possibilidades da totalização. Ela ocasionou a individualização de séries
diferentes, que se justapõem, se sucedem, se sobrepõem, se entrecruzam, sem que
se possa reduzi-las a um esquema linear. Assim, apareceram, em lugar dessa
cronologia contínua da razão, que se fazia remontar invariavelmente à
inacessível origem, à sua abertura fundadora, escalas às vezes breves,
distintas umas das outras, rebeldes diante de uma lei única, frequentemente
portadoras de um tipo de história que é própria de cada uma, e irredutíveis ao
modelo geral de uma consciência que adquire, progride e que tem memória. Segunda
consequência: a noção de descontinuidade toma um lugar importante nas
disciplinas históricas. Para a história, na sua forma clássica, o descontínuo
era, ao mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza
dos acontecimentos dispersos, decisões, acidentes, iniciativas, descobertas, e
o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que
aparecesse a continuidade dos acontecimentos.
A descontinuidade era o estigma
da dispersão temporal que o historiador encarregava-se de suprimir da história.
Ela tornou-se, agora, um dos elementos fundamentais da análise histórica, onde aparece
com um triplo papel. Constitui, de início, uma operação deliberada do
historiador (e não mais o que recebe involuntariamente do material que deve
tratar), pois ele deve, pelo menos a título de hipótese sistemática, distinguir
os níveis possíveis da análise, os métodos que são adequados a cada um, e as
periodizações que lhes convém. É também o resultado da sua descrição (e não
mais o que se deve eliminar sob o efeito de uma análise), pois o historiador se
dispõe a descobrir os limites de um processo, o ponto de inflexão de uma curva,
a inversão de um movimento regulador, os limites de uma oscilação, o limiar de
um funcionamento, o instante de funcionamento irregular de uma causalidade
circular. Ela é, enfim, o conceito que o trabalho não deixa de especificar (em
lugar de negligenciá-lo como uma lacuna uniforme e indiferente entre duas figuras
positivas); ela toma uma forma e uma função específica de acordo com o domínio
e o nível em que é delimitada: não se fala da mesma descontinuidade quando se
descreve um limiar epistemológico, a reversão de uma curva da população, ou a substituição
de uma técnica por outra. Paradoxal noção de descontinuidade: é, ao mesmo
tempo, instrumento e objecto de pesquisa, delimita o campo de que é o efeito,
permite individualizar os domínios, mas só pode ser estabelecida através da comparação
desses domínios. Enfim, não é simplesmente um conceito presente no discurso do
historiador, mas este, secretamente, a supõe: de onde poderia ele falar, na
verdade, senão a partir dessa ruptura que lhe oferece como objecto a história,
e sua própria história? Um dos traços mais essenciais da história nova é, sem
dúvida, esse deslocamento do descontínuo: a sua passagem do obstáculo à
prática; a sua integração no discurso do historiador, no qual não desempenha
mais o papel de uma fatalidade exterior que é preciso reduzir, e sim o de um
conceito operatório que se utiliza; por isso, a inversão de signos graças à
qual ele não é mais o negativo da leitura histórica (seu avesso, seu fracasso,
o limite do seu poder), mas o elemento positivo que determina o seu objecto e valida
a sua análise. Terceira consequência: o tema e a possibilidade de uma história global começam a
apagar-se, e vê-se esboçar o desenho, bem diferente, do que se poderia chamar
uma história geral. O
projecto de uma história global é o que procura reconstituir a forma de conjunto
de uma civilização, o princípio -material ou espiritual, de uma sociedade, a significação
comum a todos os fenómenos de um período, a lei que explica a sua coesão, o que
se chama metaforicamente o rosto de uma época. Tal projecto está ligado a duas
ou três hipóteses: supõe-se que entre todos os acontecimentos de uma área espaço-temporal
bem definida, entre todos os fenómenos cujo rasto foi encontrado, será possível
estabelecer um sistema de relações homogéneas: rede de causalidade permitindo
derivar cada um deles relações de analogia mostrando como eles se simbolizam uns
aos outros, ou como todos exprimem um único e mesmo núcleo central; supõe-se,
por outro lado, que uma única e mesma forma de historicidade compreenda as
estruturas económicas, as estabilidades sociais, a inércia das mentalidades, os
hábitos técnicos, os comportamentos políticos, e os submeta ao mesmo tipo de
transformação; supõe-se, enfim, que a própria história possa ser articulada em
grandes unidades, estágios ou fases, que detêm em si mesmas o seu princípio de
coesão. São estes postulados que a história nova põe em questão quando
problematiza as séries, os recortes, os limites, os desníveis, as desfasagens,
as especificidades cronológicas, as formas singulares de permanência, os tipos
possíveis de relação. Mas não que ela procure obter uma pluralidade de histórias
justapostas e independentes umas das outras: a da economia ao lado da das
instituições e, ao lado delas ainda, as das ciências, das religiões ou das
literaturas; não, tampouco, que ela busque somente assinalar, entre essas
histórias diferentes, coincidências de datas ou analogias de forma e de sentido».
In
Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora
Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
Cortesia de
FUniversitária/JDACT