«(…) Outrora,
as câmaras subterrâneas dos templos serviam de moradas às estátuas de Ísis, que
se transformaram, quando se introduziu o Cristianismo na Gália, nessas Virgens Negras que o povo dos
nossos dias rodeia de uma veneração muito particular. O seu simbolismo é,
aliás, idêntico; umas e outras mostram, no seu pedestal, a famosa inscrição: Virgini pariturae, à Virgem que deve
parir. Não se pode definir melhor o sentido esotérico das nossas Virgens negras. Elas representam,
na simbólica, a terra primitiva, a que o artista deve escolher para objecto da
sua grande obra. É a matéria--prima no estado mineral, tal como sai dos jazigos
metalíferos, profundamente enterrada sob a massa rochosa.
Nos nossos dias, as
Virgens negras são pouco numerosas. Citaremos algumas que gozam de grande
celebridade. A catedral de Chartres é a mais rica nesse aspecto, possui duas. Uma,
designada pelo vocábulo expressivo de Notre-Dame-sous-Terre,
na cripta, está sentada num trono, cujo pedestal mostra a inscrição que
indicamos: Virgini pariturae;
a outra, exterior, chamada Notre-Dame-du-Pilier,
ocupa o centro de um nicho de ex-votos
com a forma de corações inflamados. Esta última, diz-nos Witkowski, é objecto
de devoção de grande número de peregrinos. Primitivamente, acrescenta este autor, a coluna de pedra que lhe serve
de suporte estava gasta pelas línguas e pelos dentes dos seus fogosos
adoradores, como o pé de S. Pedro em Roma ou o joelho de Hércules, que os pagãos
adoravam na Sicília; mas, para preservá-la dos beijos demasiado ardentes foi
coberta com madeira, em 1831. Com a sua Virgem subterrânea, Chartres
passa por ser o mais antigo lugar de peregrinação. Ao princípio, havia apenas
uma antiga estatueta de Ísis esculpida
antes de Jesus Cristo, como contam antigos cronistas locais. Entretanto,
a nossa imagem actual data apenas do final do século XVIII, tendo a da deusa Ísis
sido destruída numa época desconhecida e substituída por uma estátua de
madeira, com o Menino sentado nos joelhos, a qual foi queimada em 1793.
Quanto à Virgem negra de Notre-Dame du Puy, cujos
membros estão escondidos, apresenta a forma de um triângulo, devido ao manto
que a cinge no pescoço e se alarga, sem uma dobra, até aos pés. O tecido está
decorado de cepas de vinha e de espigas de trigo, alegóricas do pão e do vinho
eucarísticos, e, à altura do umbigo, aparece a cabeça do Menino, tão sumptuosamente
coroada como a de sua mãe. Notre-Dame-de-Confession,
célebre Virgem negra das criptas de
Saint-Victor, em Marselha, oferece-nos um belo exemplar de estatuária
antiga, esbelta, grande e carnuda. Esta figura, plena de nobreza, tem um ceptro
na mão direita e a fronte cingida por uma coroa de triplo florão. Notre-Dame de Rocamadour, termo
de uma famosa peregrinação, já frequentada no ano de 1166, é uma madona
miraculosa cuja tradição faz remontar à origem do judeu Zaqueu, chefe dos
publicanos de Jerico e que domina o altar da capela da Virgem, construída em
1479. É uma estatueta de madeira, enegrecida pelo tempo, envolta num manto de lâminas
de prata que protege a imagem carcomida. A
fama de Rocamadour remonta ao lendário eremita, Santo Amador ou Amadour, que
esculpiu uma estatueta da Virgem, de madeira, à qual foram atribuídos numerosos
milagres. Conta-se que Amador era o pseudónimo do publicano Zaqueu, convertido por
Jesus Cristo; tendo vindo para a Gália, teria propagado o culto da Virgem, que é
muito antigo em Rocamadour; no entanto, a grande voga da peregrinação data
somente do século XII.
Em Vichy, a Virgem negra da igreja de Saint-Blaise é venerada desde a mais remota antiguidade, como dizia
já Antoine Gravier, sacerdote comunalista do século XVII. Os arqueólogos datam
esta escultura do século XIV e como a igreja de Saint-Blaise, onde se encontra, só foi construída, nas suas
partes mais antigas, no século XV, o abade Allot, que chama a atenção para esta
estátua, pensa que ela figurava outrora na capela de Saint-Nicolas, fundada em
1372 por Guillaume de Hames. A igreja
de Guéodet, chamada ainda Notre-Dame-de-la-Cité, em Quimper,
possui também uma Virgem negra.
Arquitectos, pintores,
escultores, preferindo a sua própria glória à da Arte, dedicaram-se aos modelos
antigos imitados em Itália. Os construtores da Idade Média tinham como apanágio
a fé e a modéstia. Artesãos anónimos de puras obras-primas, construíram para a
Verdade, para a afirmação do seu ideal, para a propagação e a nobreza da sua ciência.
Os do Renascimento, preocupados sobretudo com a sua personalidade, ciosos do
seu valor, construíram para a posteridade do seu nome. A Idade Média deveu o
seu esplendor à originalidade das suas criações; o Renascimento deveu a sua
fama à fidelidade servil das suas cópias. Aqui, um pensamento; ali, uma moda.
De um lado, o génio; do outro, o talento. Na obra gótica, a construção
permanece submetida à Ideia; na obra renascentista, domina-a e apaga-a. Uma
fala ao coração, ao cérebro, à alma: é o triunfo do espírito; a outra dirige-se
aos sentidos: é a glorificação da matéria. Do século XII ao século XV, pobreza
de meios mas riqueza de expressão; a partir do século XVI, beleza plástica, mediocridade
de invenção. Os mestres medievais souberam animar o calcário vulgar; os
artistas do Renascimento deixaram o mármore inerte e frio. É o antagonismo
desses dois períodos, nascidos de conceitos opostos, que explica o desprezo do
Renascimento e a sua profunda repugnância por tudo o que era gótico. Tal estado
de espírito devia ser fatal à obra da Idade Média; e é a ele que, de facto, devemos
atribuir as inúmeras mutilações que hoje deploramos». In Fulcanelli, 1926, Le
Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação
Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.
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