domingo, 2 de setembro de 2018

O Mistério das Catedrais. Interpretação Esotérica. Fulcanelli. «Tal estado de espírito devia ser fatal à obra da Idade Média; e é a ele que, de facto, devemos atribuir as inúmeras mutilações que hoje deploramos»

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«(…) Outrora, as câmaras subterrâneas dos templos serviam de moradas às estátuas de Ísis, que se transformaram, quando se introduziu o Cristianismo na Gália, nessas Virgens Negras que o povo dos nossos dias rodeia de uma veneração muito particular. O seu simbolismo é, aliás, idêntico; umas e outras mostram, no seu pedestal, a famosa inscrição: Virgini pariturae, à Virgem que deve parir. Não se pode definir melhor o sentido esotérico das nossas Virgens negras. Elas representam, na simbólica, a terra primitiva, a que o artista deve escolher para objecto da sua grande obra. É a matéria--prima no estado mineral, tal como sai dos jazigos metalíferos, profundamente enterrada sob a massa rochosa.
Nos nossos dias, as Virgens negras são pouco numerosas. Citaremos algumas que gozam de grande celebridade. A catedral de Chartres é a mais rica nesse aspecto, possui duas. Uma, designada pelo vocábulo expressivo de Notre-Dame-sous-Terre, na cripta, está sentada num trono, cujo pedestal mostra a inscrição que indicamos: Virgini pariturae; a outra, exterior, chamada Notre-Dame-du-Pilier, ocupa o centro de um nicho de ex-votos com a forma de corações inflamados. Esta última, diz-nos Witkowski, é objecto de devoção de grande número de peregrinos. Primitivamente, acrescenta este autor, a coluna de pedra que lhe serve de suporte estava gasta pelas línguas e pelos dentes dos seus fogosos adoradores, como o pé de S. Pedro em Roma ou o joelho de Hércules, que os pagãos adoravam na Sicília; mas, para preservá-la dos beijos demasiado ardentes foi coberta com madeira, em 1831. Com a sua Virgem subterrânea, Chartres passa por ser o mais antigo lugar de peregrinação. Ao princípio, havia apenas uma antiga estatueta de Ísis esculpida antes de Jesus Cristo, como contam antigos cronistas locais. Entretanto, a nossa imagem actual data apenas do final do século XVIII, tendo a da deusa Ísis sido destruída numa época desconhecida e substituída por uma estátua de madeira, com o Menino sentado nos joelhos, a qual foi queimada em 1793.
Quanto à Virgem negra de Notre-Dame du Puy, cujos membros estão escondidos, apresenta a forma de um triângulo, devido ao manto que a cinge no pescoço e se alarga, sem uma dobra, até aos pés. O tecido está decorado de cepas de vinha e de espigas de trigo, alegóricas do pão e do vinho eucarísticos, e, à altura do umbigo, aparece a cabeça do Menino, tão sumptuosamente coroada como a de sua mãe. Notre-Dame-de-Confession, célebre Virgem negra das criptas de Saint-Victor, em Marselha, oferece-nos um belo exemplar de estatuária antiga, esbelta, grande e carnuda. Esta figura, plena de nobreza, tem um ceptro na mão direita e a fronte cingida por uma coroa de triplo florão. Notre-Dame de Rocamadour, termo de uma famosa peregrinação, já frequentada no ano de 1166, é uma madona miraculosa cuja tradição faz remontar à origem do judeu Zaqueu, chefe dos publicanos de Jerico e que domina o altar da capela da Virgem, construída em 1479. É uma estatueta de madeira, enegrecida pelo tempo, envolta num manto de lâminas de prata que protege a imagem carcomida. A fama de Rocamadour remonta ao lendário eremita, Santo Amador ou Amadour, que esculpiu uma estatueta da Virgem, de madeira, à qual foram atribuídos numerosos milagres. Conta-se que Amador era o pseudónimo do publicano Zaqueu, convertido por Jesus Cristo; tendo vindo para a Gália, teria propagado o culto da Virgem, que é muito antigo em Rocamadour; no entanto, a grande voga da peregrinação data somente do século XII.
Em Vichy, a Virgem negra da igreja de Saint-Blaise é venerada desde a mais remota antiguidade, como dizia já Antoine Gravier, sacerdote comunalista do século XVII. Os arqueólogos datam esta escultura do século XIV e como a igreja de Saint-Blaise, onde se encontra, só foi construída, nas suas partes mais antigas, no século XV, o abade Allot, que chama a atenção para esta estátua, pensa que ela figurava outrora na capela de Saint-Nicolas, fundada em 1372 por Guillaume de Hames. A igreja de Guéodet, chamada ainda Notre-Dame-de-la-Cité, em Quimper, possui também uma Virgem negra.

Arquitectos, pintores, escultores, preferindo a sua própria glória à da Arte, dedicaram-se aos modelos antigos imitados em Itália. Os construtores da Idade Média tinham como apanágio a fé e a modéstia. Artesãos anónimos de puras obras-primas, construíram para a Verdade, para a afirmação do seu ideal, para a propagação e a nobreza da sua ciência. Os do Renascimento, preocupados sobretudo com a sua personalidade, ciosos do seu valor, construíram para a posteridade do seu nome. A Idade Média deveu o seu esplendor à originalidade das suas criações; o Renascimento deveu a sua fama à fidelidade servil das suas cópias. Aqui, um pensamento; ali, uma moda. De um lado, o génio; do outro, o talento. Na obra gótica, a construção permanece submetida à Ideia; na obra renascentista, domina-a e apaga-a. Uma fala ao coração, ao cérebro, à alma: é o triunfo do espírito; a outra dirige-se aos sentidos: é a glorificação da matéria. Do século XII ao século XV, pobreza de meios mas riqueza de expressão; a partir do século XVI, beleza plástica, mediocridade de invenção. Os mestres medievais souberam animar o calcário vulgar; os artistas do Renascimento deixaram o mármore inerte e frio. É o antagonismo desses dois períodos, nascidos de conceitos opostos, que explica o desprezo do Renascimento e a sua profunda repugnância por tudo o que era gótico. Tal estado de espírito devia ser fatal à obra da Idade Média; e é a ele que, de facto, devemos atribuir as inúmeras mutilações que hoje deploramos». In Fulcanelli, 1926, Le Mystère des Cathédrales, 1964, O Mistério das Catedrais, Interpretação Esotérica dos símbolos herméticos, Edições 70, colecção Esfinge, 1975.

Cortesia de E70/JDACT