quarta-feira, 5 de setembro de 2018

O Último Judeu. Noah Gordon. «O osso de uma mártir? É o osso de Santa Ana, disse calmamente o prior. Espina demorou um pouco para compreender. A mãe de La Virgen Maria!»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Primeiro Filho.
Toledo, Castela. 23 de Agosto de 1489.
O Filho do Ourives.
«(…) Tinham se passado onze anos desde a sua conversão. Durante todo esse tempo se dedicara com fervor à fé pela qual optara, observando cada dia santo, assistindo diariamente à missa com a esposa, mostrando-se sempre ávido para servir a sua Igreja. Agora pusera-se prontamente, na estrada, para atender ao pedido do padre, embora num passo que não fatigasse o animal sob o sol abrasador. Chegou ao mosteiro jeronimita a tempo de ouvir o som de bronze dos sinos chamando os fiéis para o Ângelus da Encarnação. Viu também quatro suados irmãos leigos carregando a cesta de pão de véspera e o caldeirão de sopa fraca, o caldo ralo que seria a única refeição do dia para os indigentes reunidos na porta do mosteiro. Encontrou o padre Sebastián andando de um lado para o outro no claustro, absorto numa conversa com frei Júlio Pérez, o sacristão da capela. O ar de gravidade nos seus rostos chegou até Espina.
Atordoado foi a palavra que piscou na cabeça do médico quando o prior mandou o sacristão sair e cumprimentou-o sombriamente em nome de Cristo. Encontraram o corpo de um garoto entre as nossas oliveiras, foi assassinado, disse o padre, um homem de meia-idade com uma ansiedade crónica no olhar. Era como se vivesse com medo de Deus não estar satisfeito com o seu trabalho. Sempre fora decente nas relações com os convertidos. Espina abanou devagar a cabeça, mas a mente já estava atenta a um sinal de advertência. Era um mundo violento. Com desagradável frequência alguém era encontrado morto, mas após a vida ter fugido não havia razão para chamar um médico. Venha. O prior conduziu-o até à cela de um frade, onde o corpo fora estendido. Já o calor tinha trazido moscas e o especial fedor adocicado da mortalidade humana. Com uma pontada de angústia, Bernardo Espina reconheceu o rosto e benzeu-se, não sabendo se o reflexo era pelo menino judeu chacinado, por si mesmo ou pela presença do clérigo.
Gostaríamos de saber mais detalhes sobre esta morte. O padre Sebastián olhou para ele e continuou: saber tudo. Tanto quanto é possível saber. Bernardo abanou a cabeça, ainda confuso. Ele chama-se Meir e é filho de Helkias Toledano, disse Bernardo e o padre assentiu. O pai do rapaz assassinado era um dos principais ourives de toda a Castela. Bernardo Espina continuou: se não me falha a memória, o garoto tem no máximo quinze anos. Seja como for, a sua vida mal passou da infância. Assim é que ele foi encontrado? Exacto. Por frei Angelo, que colhia azeitonas de manhã muito cedo, logo após as Matinas. Posso examiná-lo, padre?, perguntou Espina, e o prior concordou com um gesto impaciente da mão. O rosto do garoto era inocente e não tinha marcas. Havia contusões esbranquiçadas nos braços e no peito, um ponto roxo nos músculos da coxa, três facadas superficiais nas costas e um corte no lado esquerdo, sobre a terceira costela. O ânus estava rasgado e havia esperma nas nádegas. E filetes muito nítidos de sangue de um lado a outro da garganta cortada. Bernardo conhecia a família, judeus devotos e obstinados que abominavam os que, como o próprio Bernardo, se tinham disposto a abandonar a religião dos pais.
Após o exame, o padre Sebastián pediu que o médico o seguisse até ao sacellum, onde se deixaram cair de joelhos nas duras lajes diante do altar e recitaram o pai-nosso. De uma estante, atrás do altar, o padre Sebastián tirou uma pequena caixa de sândalo. Abrindo-a, removeu uma peça de seda escarlate, fortemente perfumada. Quando ele desdobrou a seda, Bernardo Espina viu um fragmento seco e esbranquiçado, com menos de meio palmo de comprimento. Sabe o que é isso? O padre parecia entregar o objecto com relutância. Espina aproximou-se da luz oscilante das velas votivas e examinou-o. Um pedaço de osso humano, padre. Sim, meu filho. Bernardo estava numa ponte frágil, estreita, equilibrando-se sobre o traiçoeiro abismo do conhecimento ganho em horas longas e secretas diante da mesa de dissecação. A dissecação fora proibida pela Igreja, mas Espina ainda era judeu na época da aprendizagem com Samuel Provo, um médico de renome, também judeu, que a praticava secretamente.
Agora ele olhava directamente nos olhos do prior. O fragmento de um fémur, o maior osso do corpo. Neste caso, tirado de perto do joelho. Examinou os relevos do osso, avaliando a massa, a angulação, os sinais característicos, os sulcos. É da perna direita de uma mulher. Pode dizer tudo isso simplesmente olhando? Sim. A luz das velas amarelava os olhos do prior. É o mais sagrado dos elos para o Salvador. Uma relíquia. Bernardo Espina fitou o osso com interesse. Nunca sonhara em chegar tão perto de uma relíquia sagrada. O osso de uma mártir? É o osso de Santa Ana, disse calmamente o prior. Espina demorou um pouco para compreender. A mãe de La Virgen Maria!» In Noah Gordon, O Ùltimo Judeu, Uma História de Terror na Inquisição, Editora Rocco, 2000, ISBN 978-853-251-171-6.

Cortesia de ERocco/BertrandE/JDACT