«(…) O problema que se apresenta,
e que define a tarefa de uma história geral, é determinar que forma de relação
pode ser legitimamente descrita entre essas diferentes séries; que sistema vertical
podem formar; qual é, de umas às outras, o jogo das correlacções e das
dominâncias; de que efeito podem ser as desfasagens, as temporalidades
diferentes, as diversas permanências; em que conjuntos distintos certos
elementos podem figurar simultaneamente; em resumo, não somente que séries, mas
que séries de séries, ou, em outros termos, que quadros, é possível
constituir. Uma descrição global cinge todos os fenómenos em torno de um centro
único, princípio, significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto;
uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dispersão. Finalmente,
a última consequência: a história nova encontra um certo número de problemas
metodológicos, muitos dos quais, sem dúvida, a antecediam há muito, mas cujo
feixe agora a caracteriza. Entre eles, podem-se citar: a constituição de corpus coerentes e homogéneos
de documentos (corpus abertos
ou fechados, acabados ou indefinidos); o estabelecimento de um princípio de
escolha (conforme se queira tratar exaustivamente a massa documental, ou se
pratique uma amostragem segundo métodos de levantamento estatístico, ou se
tente determinar, antecipadamente, os elementos mais representativos); a
definição do nível de análise e dos elementos que lhe são pertinentes (no
material estudado, podem-se salientar as indicações numéricas; as referências,
explícitas ou não, a acontecimentos, a instituições, a práticas; as palavras empregues,
com as suas regras de uso e os campos semânticos por elas traçados, ou, ainda,
a estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem); a
especificação de um método de análise (tratamento quantitativo dos dados, decomposição
segundo um certo número de traços assinaláveis, cujas correlacções são
estudadas, decifração interpretativa, análise das frequências e das
distribuições); a delimitação dos conjuntos e dos subconjuntos que articulam o
material estudado (regiões, períodos, processos unitários); a determinação das
relações que permitem caracterizar um conjunto (pode tratar-se de relações numéricas
ou lógicas; de relações funcionais, causais, analógicas; pode tratar-se da
relação significante-significado).
Todos estes problemas fazem
parte, de agora em diante, do campo metodológico da história, campo que merece
atenção por duas razões. Inicialmente, porque imaginamos até que ponto se
libertou do que constituía, ainda há pouco, a filosofia da história, e das questões
que ela colocava (sobre a racionalidade ou a teleologia do devir, sobre a
relatividade do saber histórico, sobre a possibilidade de descobrir ou de dar
um sentido à inércia do passado e à totalidade inacabada do presente). Em
seguida, porque coincide, em alguns dos seus pontos, com problemas que se
encontram em alguma outra parte, nos domínios, por exemplo, da linguística, da
etnologia, da economia, da análise literária, da mitologia. A estes problemas
pode-se atribuir a sigla do estruturalismo. Sob várias condições, entretanto, eles
estão longe de cobrir, sozinhos, o campo metodológico da história, de que só
ocupam uma parte cuja importância varia com os domínios e os níveis de análises;
salvo em certo número de casos relativamente limitados, eles não foram
importados da linguística ou da etnologia (conforme o percurso hoje frequente),
mas nasceram no campo da própria história, essencialmente no da história económica
e em virtude das questões que ela colocava; enfim, não autorizam, de modo
algum, que se fale de uma estruturalista da história, ou, ao menos, de uma
tentativa para superar um conflito ou uma oposição entre estrutura e devir: já há
bastante tempo que os historiadores identificam, descrevem e analisam
estruturas, sem jamais se terem perguntado se não deixavam escapar a viva,
frágil e fremente história. A oposição estrutura-devir não é pertinente
nem para a definição do campo histórico nem, sem dúvida, para a definição de um
método estrutural.
Esta mutação epistemológica da
história não está ainda acabada. Não data de ontem, entretanto, pois se pode,
sem dúvida, fazer remontar a Marx o seu primeiro momento. Mas os seus efeitos demoraram.
Ainda em nossos dias, e sobretudo para a história do pensamento, ela não foi
registada nem reflectida, enquanto outras transformações mais recentes puderam
sê-lo, as da linguística, por exemplo, como se fosse particularmente difícil,
nesta história que os homens retraçam com as suas próprias ideias e com os seus
próprios conhecimentos, formular uma teoria geral da descontinuidade, das séries,
dos limites, das unidades, das ordens específicas, das autonomias e das
dependências diferenciadas. É como se aí onde sentissemos habituados a procurar
as origens, a percorrer de volta, indefinidamente, a linha dos antecedentes, a
reconstituir tradições, a seguir curvas evolutivas, a projectar teleologias, e
a recorrer continuamente às metáforas da vida, experimentássemos uma repugnância
singular em pensar a diferença, em descrever os afastamentos e as dispersões,
em desintegrar a forma tranquilizadora do idêntico. Ou, mais exactamente, é
como se a partir desses conceitos de limiares, mutações, sistemas independentes,
séries limitadas, tais como são utilizados de facto pelos historiadores,
tivéssemos dificuldade em fazer a teoria, em deduzir as consequências gerais e
mesmo em derivar todas as implicações possíveis. É como se tivéssemos medo de
pensar o outro no tempo do nosso próprio pensamento». In Michel Foucault, A
Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora Forense Universitária,
Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
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