«(…) Já tinham ocorrido dois confrontos
na cidade durante os ataques do ano passado e eles a destruíram parcialmente na
ocasião, embora agora grande parte dela já estivesse ruindo. Não que ainda não
fosse magnífica. Ela fazia a nossa Paris parecer um vilarejo. Diziam que a
cidade tinha ficado de pé por nove séculos, desde que o imperador Constantino a
transformou na sede de seu novo Império Romano cristão. Era ela o portão para o
Oriente e o bastião da Europa contra os turcos seljúcidas que tinham tomado a
Terra Santa de nós. Bem, nós lidaremos com eles muito em breve, assim que esse
assunto estiver encerrado. Os gregos bizantinos que governam aqui ainda se
chamam de cristãos, mas já não mostram respeito ao papa e seguem a sua própria
forma oriental bárbara de escutar a Palavra de Deus. A nossa missão foi
definida assim, essas pessoas devem ser trazidas de volta ao Verdadeiro
Rebanho, através do uso da força. E, com a Graça de Cristo e a liderança de
nosso bom lorde Dandolo, assim faremos! No seu tempo, o papa Inocêncio
compreenderá e verá por que temos que levantar as nossas espadas contra irmãos
cristãos. Ele verá a Justiça Divina da nossa acção. Acabaremos com esses gregos
desgraçados agora que nosso sangue está aquecido. Eles ficarão de joelhos e
aprenderão que não nos devem enfrentar e nem mesmo permitir uma mesquita dentro
das suas muralhas!
Mas tem sido árduo. Depois do
nosso primeiro ataque aos cristãos orientais na cidade de Zara, o papa Inocêncio
declarou que estávamos excomungados. Aquilo abateu-se de forma pesada sobre nós.
Como um açoite, mil chicotes em nossas costas. Ele aliviou aquela sentença
medonha mais tarde, pois desejou que continuássemos como Guerreiros Peregrinos
até Jerusalém. E também houve as cartas enviadas pelo doge Dandolo. Aquelas
cartas devem tê-lo convencido. Mas qual poder de persuasão o doge poderia ter
sobre o papa? Mesmo assim, Inocêncio não livrou os venezianos da excomunhão.
Ficámos perplexos, me lembro bem, pela indiferença deles. Lorde Dandolo
inclusive debochou daquilo. Perguntávamos a nós mesmos o que o permitia ousar
fazê-lo. Mas ele disse que não tínhamos nada a temer, e acreditamos nele. Não éramos
capazes de desobedecer a Dandolo, apesar de alguns de nós murmurarem dúvidas.
Alguns até mesmo tentaram ficar de fora da presente batalha, mas a maioria não era
determinada o suficiente para tal. Há algo a respeito deste homem, algum poder
que ele tem dentro de si. Ele ordena e nós devemos obedecer. Eu sou apenas um
cavaleiro cristão. Não questiono meu líder. Sempre pareceu algo estranho para
mim, mas o facto é que o seguiríamos a qualquer lugar. Houve momentos em que
alguns de nós se perguntavam porquê. Mas não se pode pensar em tais coisas
quando há uma guerra a ser vencida.
Os gregos usavam cimitarras,
aquelas espadas perversas obtidas com os infiéis seljúcidas que tinham permissão
para viver entre eles. É uma boa espada, corta como uma foice, assim, quando até
mesmo um centímetro daquela lâmina em formato de lua crescente. O resto segue
pela curva, aumentando o poder de corte, e ela atravessa ossos e músculos sem
dificuldades. Meu compatriota e capitão, Mathieu le Barca, perdeu o braço que
empunhava a espada no confronto do primeiro dia. Ele continuou lutando, a
excitação corria no seu sangue por causa do ferimento e ele não sentiu dor, mas
estava de joelhos no momento em que o alcancei e havia três homens atacando.
Golpeei de cima a baixo o homem que estava mais próximo com a minha espada de lâmina
larga , atravessando-lhe o ombro do braço que segurava o escudo, desde a clavícula
até ao coração, cortando-o em duas partes como uma peça de carne. Os outros
tentaram correr então, mas acertei num no meio do crânio, os seus elmos gregos impotentes
contra o aço francês. Dividi a sua cabeça ao meio, com a sua boca meio aberta,
meio fechada em dois pedaços daquele jeito. Contra o terceiro, usei o meu próprio
elmo resistente para lhe aplicar uma investida. Transformei o seu cérebro em mingau.
Mas será que qualquer um de nós,de qualquer dos lados, parou para pensar que tanto
nós quanto eles somos cristãos? Nós tínhamos-nos juntado como Guerreiros
Peregrinos em nome de Cristo para expulsar os turcos da Terra Santa, para tomar
de volta Jerusalém. Essa era nossa verdadeira missão». In Anton Gill, O Pergaminho
Sagrado, 2012, Editora Record, 2013, ISBN 978-850-140-155-7.
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