sexta-feira, 5 de julho de 2019

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Enquanto se esforçava para voltar ao seu quarto, Galib concluiu que não teria mais muito tempo de vida. Um veneno misterioso devastava-lhe o corpo»

jdact

«(…) Galib, novamente sério, tirou um rolo da manga esquerda da batina e estendeu-o com certa pressa a Uberto. Entregue esta carta a Raymond Péreille quando chegar ao rochedo de Montségur. Por meio dela, peço-lhe que o ponha a par das informações de que dispõe sobre o conde de Nigredo e lhe dê uma cópia de um raro manuscrito de alquimia que possui: o Turba Philosophorum. Acho que poderá ser de muita utilidade a você e seu pai, para que se inteirem das manobras do inimigo. E vá tranquilo, o senhor de Péreille me conhece há bastante tempo. Não deixará de ajudá-lo. Farei isso, magister. Óptimo, filho. Agora escute: quando sair do castelo, não se dirija à porta principal da muralha, mas sim ao lado oposto. Siga a muralha até uma pequena cancela, onde o esperam dois guardas com quem fiz um acordo. Deu-lhe uma bolsa recheada de moedas. Entregue-lhes isto e o deixarão passar sem problemas. Uberto pegou a bolsa, sopesou-a e prendeu-a ao cinto, junto com a jambiya. Diga a meu pai que me espere em Toulouse, pediu o jovem. E, esporeando o cavalo, saiu a trote da estrebaria. O velho observou-o afastar-se, enquanto uma dor repentina no peito obrigava-o a ajoelhar-se no chão. Lembre-se, gritou apertando nervosamente um tufo de palha entre os dedos, lembre-se do Turba Philosophorum! Uberto, já distante, fez sinal de que entendera sem virar-se na sela. A silhueta do jovem cavaleiro, cada vez mais longínqua, desapareceu na noite.
Enquanto se esforçava para voltar ao seu quarto, Galib concluiu que não teria mais muito tempo de vida. Um veneno misterioso devastava-lhe o corpo. Talvez o houvesse ingerido na ceia, misturado à sopa de centeio ou ao refresco de groselha. Ou lhe tivesse sido ministrado depois, durante o sono, antes do encontro secreto com Uberto. Fosse como fosse, a maldita substância começava a turvar a sua percepção da realidade. A luz das tochas emergia das sombras com estranha intensidade, alongando-se pelo chão como rastros de caracol. O cheiro de resina e salitre chegava-lhe às narinas amplificado e nauseante; a vertigem impedia-o de continuar andando e a falta de ar aumentava a cada passo. Por isso apressara tanto Uberto, correndo o risco de parecer grosseiro e mesmo suspeito. Cerca de uma hora antes, notara os sintomas da intoxicação e sua experiência na matéria o induzira logo a atribuí-los ao envenenamento. Fora obrigado a agir enquanto estava ainda lúcido. E ele o fez. Tinha conseguido encaminhar o rapaz. Agora só lhe restava chegar ao seu alojamento e consultar algum livro para descobrir o antídoto apropriado, embora isso lhe parecesse um esforço quase inútil. Antes, porém, devia encontrar uma maneira de informar Ignazio de suas suspeitas.
A estrada que levava ao torreão parecia interminável, um calor opressivo no rosto e no peito forçava-o a parar a todo instante para recuperar o fôlego. De súbito, numa dessas pausas, viu-se diante de uma figura envolta numa capa preta. O encontro foi tão inesperado que o velho recuou um passo, arriscando-se a cair. Quem é você?, perguntou num primeiro impulso, mas logo emendou: ah, eu o conheço... Muito bem, replicou o encapuzado. Assim ficará mais à vontade para me revelar aonde enviou o rapaz com tanta urgência. Maldito... O velho levou a mão ao peito. Então foi você quem me envenenou... É muito perspicaz, magister. Lê nas pessoas quase tão bem quanto nos livros. A figura avançou lentamente. E por falar em livros, deve imaginar o que estou procurando. Diga-me então onde está o Turba Philosophorum. Galib recuou mais um passo». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT