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«(…) Galib, novamente sério,
tirou um rolo da manga esquerda da batina e estendeu-o com certa pressa a
Uberto. Entregue esta carta a Raymond Péreille quando chegar ao rochedo de Montségur.
Por meio dela, peço-lhe que o ponha a par das informações de que dispõe sobre o
conde de Nigredo e lhe dê uma cópia de um raro manuscrito de alquimia que
possui: o Turba Philosophorum. Acho que poderá ser de muita utilidade a você e
seu pai, para que se inteirem das manobras do inimigo. E vá tranquilo, o senhor
de Péreille me conhece há bastante tempo. Não deixará de ajudá-lo. Farei isso, magister.
Óptimo, filho. Agora escute: quando sair do castelo, não se dirija à porta principal
da muralha, mas sim ao lado oposto. Siga a muralha até uma pequena cancela,
onde o esperam dois guardas com quem fiz um acordo. Deu-lhe uma bolsa recheada
de moedas. Entregue-lhes isto e o deixarão passar sem problemas. Uberto pegou a
bolsa, sopesou-a e prendeu-a ao cinto, junto com a jambiya. Diga a meu pai que
me espere em Toulouse, pediu o jovem. E, esporeando o cavalo, saiu a trote da
estrebaria. O velho observou-o afastar-se, enquanto uma dor repentina no peito obrigava-o
a ajoelhar-se no chão. Lembre-se, gritou apertando nervosamente um tufo de
palha entre os dedos, lembre-se do Turba Philosophorum! Uberto, já distante,
fez sinal de que entendera sem virar-se na sela. A silhueta do jovem cavaleiro,
cada vez mais longínqua, desapareceu na noite.
Enquanto se esforçava para voltar
ao seu quarto, Galib concluiu que não teria mais muito tempo de vida. Um veneno
misterioso devastava-lhe o corpo. Talvez o houvesse ingerido na ceia, misturado
à sopa de centeio ou ao refresco de groselha. Ou lhe tivesse sido ministrado
depois, durante o sono, antes do encontro secreto com Uberto. Fosse como fosse,
a maldita substância começava a turvar a sua percepção da realidade. A luz das
tochas emergia das sombras com estranha intensidade, alongando-se pelo chão
como rastros de caracol. O cheiro de resina e salitre chegava-lhe às narinas
amplificado e nauseante; a vertigem impedia-o de continuar andando e a falta de
ar aumentava a cada passo. Por isso apressara tanto Uberto, correndo o risco de
parecer grosseiro e mesmo suspeito. Cerca de uma hora antes, notara os sintomas
da intoxicação e sua experiência na matéria o induzira logo a atribuí-los ao
envenenamento. Fora obrigado a agir enquanto estava ainda lúcido. E ele o fez.
Tinha conseguido encaminhar o rapaz. Agora só lhe restava chegar ao seu
alojamento e consultar algum livro para descobrir o antídoto apropriado, embora
isso lhe parecesse um esforço quase inútil. Antes, porém, devia encontrar uma
maneira de informar Ignazio de suas suspeitas.
A estrada que levava ao torreão
parecia interminável, um calor opressivo no rosto e no peito forçava-o a parar
a todo instante para recuperar o fôlego. De súbito, numa dessas pausas, viu-se
diante de uma figura envolta numa capa preta. O encontro foi tão inesperado que
o velho recuou um passo, arriscando-se a cair. Quem é você?, perguntou num
primeiro impulso, mas logo emendou: ah, eu o conheço... Muito bem, replicou o
encapuzado. Assim ficará mais à vontade para me revelar aonde enviou o rapaz
com tanta urgência. Maldito... O velho levou a mão ao peito. Então foi você
quem me envenenou... É muito perspicaz, magister. Lê nas pessoas quase tão bem
quanto nos livros. A figura avançou lentamente. E por falar em livros, deve
imaginar o que estou procurando. Diga-me então onde está o Turba Philosophorum.
Galib recuou mais um passo». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida
do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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