terça-feira, 2 de julho de 2019

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Mal entra na salinha que pertencera a dona Urraca, o criado vem dizer-lhe que o chamam à sala do trono há mais de meia hora. Quem? Pergunta…»

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«(…) Sancho revê a hospitalidade e as falas durante a viagem de regresso, já tarde feita. Bom jeito lhe daria ter, como seus conselheiros, alguns daqueles varões, calejados pelo trabalho, de sizo aprimorado pelo rigor da vida. Mal chega ao pátio e desmonta, é abordado por João Fernandes Lima, por de mais aperreado. D. Sancho, senhor D. Sancho, tenho algumas novidades menos boas… Diz-lhe, sempre em andamento e com o nobre atrás dele, que só vai mudar de fato. Gosta do galego, antigo mordomo do avô e casado com a sua barregã, Maria Pais Ribeira, depois da morte de Berengária Afonso Baião. João Fernandes insiste: ouvi-me senhor, não é para esse lado, destinaram-vos a câmara da vossa mãe na outra ponta do paço… Sancho para, de repente. E quem mandou que assim fosse? Abril Peres Lumiares... era isso que vos queria dizer. E sai, constrangido por dar a notícia, condoído da expressão do pequeno rei. Já no quarto, Sancho engole em seco enquanto troca a túnica molhada. Porque se arroga Abril o direito de dispor da sua vida? Devia cultivar, como seu pai, o afecto antigo por um descendente de Egas Moniz e de seu bisavô Afonso Henriques, mas nunca viu varão mais arrogante. Ostenta o poder adquirido à custa de privilégios reais como se fosse ele o próprio rei.
Mal entra na salinha que pertencera a dona Urraca, o criado vem dizer-lhe que o chamam à sala do trono há mais de meia hora. Quem? Pergunta, de olhos nos documentos espalhados pela mesa. Os membro da vossa cúria, senhor…, e pedem-vos alguma urgência. Sancho levanta a cabeça devagar, para encarar o criado. Alguma urgência..., do que se trata, apurastes? Não, senhor, mas parece ser coisa relacionada com a vossa investidura. Dizei-lhes que doravante serei eu a convocá-los. O criado fica pregado ao chão, sentindo no corpo o rumor de tempestade. Precisais que repita a ordem? Não, senhor, entendi perfeitamente. E parte, temeroso do que possa acontecer, mal transmita a lacónica mensagem. Que não recaia sobre ele a ira dos senhores... Gil Vasques é o primeiro a chegar, como se tivesse confidências a fazer. Sentis-vos bem aqui, senhor D. Sancho, não é?
Sabeis que sim, no aconchego deste espaço passaremos a tratar dos assuntos importantes. E vossos companheiros, aonde estão? Devem estar por aí a romper, e baixando o tom de voz, ficaram por de mais irados com a vossa ordem. Entendo-os muito bem, também não gosto nada que me convoquem como se fosse um subordinado. Preparai-vos, senhor, querem levar-vos a Lisboa nos próximos dias, por causa da questão de vossas tias. Têm assim tanta pressa? Fazei por concordar com eles, é uma questão que não podemos contornar. E mestre Vicente? Ocupado com assuntos do bispado. Mal chegue, pedir-lhe-ei opinião. Precisamos de tacto, Gil Vasques, com tanta hostilidade entre os meus principais. Culpa das eternas ligações ao clero, senhor..., das quezílias herdadas por vosso pai. Mas folgo em ver que já reparais no essencial. Queria perguntar-vos, em particular: devo continuar com Pêro Anes Nóvoa, como mordomo? É a melhor escolha, senhor..., esteve com vosso pai depois da morte de Martim Fernandes, vosso aio. O papa Honório III culpou-o de ser um mau conselheiro... E também de fomentar a minha discórdia com o arcebispo. Os acordes da música chegam a Roma conforme a tocam os clérigos do reino. Há muita gente interessada no lugar, pronta a fazer intriga. Falais de Henrique Mendes Sousa? Já não teve desavenças com Pêro Anes Nóvoa…, já não vos declarou a esperança de um dia ocupar o posto? Às vezes hesito..., será que Pêro Nóvoa me será fiel?» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT