quarta-feira, 31 de julho de 2019

No 31. Em Torno de Hilda Hilst.. Nilze Maria A. R. S. Busato. «… um livro que se situa no panorama da leitura atenta, sensível e curiosa da obra da autora. Reunimos aqui pesquisadores da obra de Hilda Hilst, do Brasil e do exterior, amantes dessa chama inquieta…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O dado de provocação desta pergunta ainda se faz presente, passados dez anos da sua morte (1930-2004). A escritora, poeta e teatróloga, nascida em Jaú, São Paulo, ganha nestes últimos tempos uma nova leitura e um interesse crescente pela sua obra. Teria escrito para quem? Queixava-se desde os anos 1970 da falta de leitores dos seus textos. Teria Hilda Hilst escrito para os leitores de nossa época? Leitores curiosos e abertos aos temas de sua estranha forma? Leitores que não mais se enrubescem ante os despudores das suas personagens? O facto é que há leitores que não têm medo de percorrer o impasse que a literatura oferece no seu insistente renascer de formas e temas. Os que enfrentam o jogo fornecido pela escritora absorvem e revolvem esse universo do sacro e metafísico, do erótico e pornográfico, do combativo discurso político e social, do amoroso e sublime desejo da morte.
Em torno de Hilda Hilst é um livro que se situa no panorama da leitura atenta, sensível e curiosa da obra da autora. Reunimos aqui pesquisadores da obra de Hilda Hilst, do Brasil e do exterior, amantes dessa chama inquieta que é o texto literário que a escritora paulista tão bem soube manter quente e acesa ao longo dos quarenta e sete anos de trabalho exclusivo com a literatura. Vários olhares e vários enfoques acendem a chama da palavra em lança, em jogo perpétuo com a linguagem, com o objectivo único de descobrir como se encena a performance do discurso da obra de Hilda, que, no seu trajecto tenso e violento, sublime e erótico, desafia tanto os trabalhos de tradução, como os trabalhos críticos que se submetem aos interstícios da sua linguagem. Lembremo-nos aqui do primeiro poema de Prelúdios, intensos para os desmemoriados do amor. Hilda Hilst, nesse poema, oferece--nos um corpo. Um corpo de desejos e procuras. De dentro dele, do poema-corpo, emerge uma voz que convida: toma-me. E o poema se entrega como num jogo de sensações e trocas: toma-me / Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute / Em cadência minha escura agonia. Mas enquanto caminhas / Em lúcida altivez, eu já sou o passado. [...] / Passeia / Sobre mim, amor, e colhe o que me resta: / Nocturno girassol. Rama secreta.
Passeamos. Tateamos esse corpo. De dentro e no entorno. E eis que o livro nasce a tantas mãos e tantos olhares e vozes. Nasce com um desejo, o de descobrir a persona ou as várias personas que habitam a lírica de Hilda Hilst. E, ainda, nasce com o desejo de explorar na linguagem de sua narrativa esse lado do obsceno e do inviolável, da ironia e do desmascarar, do erudito e do popular que tão bem soube articular como um repertório cultural rico para a sua obra. Os capítulos a que o leitor se lançará a partir daqui procuram situar-se na obra de Hilda Hilst a partir de um ponto de vista estratégico.
O objectivo de cada um é de levar o leitor a, conjuntamente com os autores, perscrutar o olhar crítico que desenha as formas do texto hilstiano, no seu ondular dramático e erótico do discurso, presente na sua produção tanto teatral quanto narrativa; na natureza vitimológica de sua poesia lírica e suas entranhas discursivas que se desdobram e se exploram intertextualmente. Até as suas crónicas são objecto de leitura, evidenciando nelas o lado humorístico que tão bem Hilda Hilst soube cultivar. Nada nela era para ser levado a sério. Ou antes, tudo era feito dentro da seriedade com que a literatura se busca num incessante renascer de si mesma, pelo esgotamento que logo percebe nas suas rotas.

As vozes que o leitor ouvirá serão múltiplas, cada uma explorando o diapasão acústico das demais vozes que emergem dos Contos d’escárnio, por exemplo, no desafio que impõem à sua tradução para o inglês. Como compreender os caracteres chineses que acompanham os poemas de Sobre a tua grande face, como traduzi-los na sua presença visual concisa contrastada com o verbal solene dos versos? Outro percurso na obra de Hilda Hilst é de suas intestinações, seus espaços de gruta e intimidade lodosa, onde o grotesco e o patético emergem numa linguagem sem pudores. Um modo de ser do sujeito do discurso que revela o humano sob a pele do bicho que habita o homem. Um modo de ser que se revela na linguagem e na cena aberta. O gesto sacrificial e maldito é objecto dos capítulos que se lançam nas sendas desse elemento nocturno e místico, mas tão verdadeiramente sincero na sua projecção lírica que qualquer leitor de Hilda Hilst se vê à mercê da sua palavra. Assim são as análises que se inserem no corpo de Fluxo-floema, nos interstícios de Poemas malditos, gozosos e devotos, nos mistérios que envolvem a morte e a dimensão orgiástica da vida, o erotismo e a libidinagem, em textos como O caderno rosa de Lori Lamby, A obscena senhora D e Da morte. Odes mínimas, por exemplo.
O erotismo na obra de Hilda Hilst não se oferece somente nas referências ao corpo ou nas intenções do enunciador do discurso, ou no jogo enunciativo com a figura de um deus para quem se lança como desejo, como escravo, como dominador. O erotismo na obra de Hilda Hilst habita a linguagem, no seu jogo linguístico, quase carnal com a palavra que vai se despindo e se experimentando, sendo autorreferencializada pelo discurso». In Nilze Maria Azevedo Reguera Susanna Busato, Em Torno de Hilda Hilst, Editora UNESP, 2015, ISBN 978-856-833-469-0.

Editora UNESP/JDACT