segunda-feira, 1 de julho de 2019

Camões e a Infanta D. Maria. Ceuta. José Maria Rodrigues. «Vejo-vos, pensamentos, alterados e não quereis, de esquivos, declarar-me que é isto, que vos traz tão enleados?»

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De volta de Ceuta
«(…) Olvidada e aborrecida por causa da infanta, exposta á irrisão com expressões equivocas para a sua honra delicada, a menina dos olhos verdes tinha o coração morto para o falso cavalheiro ingrato, que ella tanto havia amado. Para

Falsos amores,
Falsos, maus, enganadores,

bastara uma vez.

Ao desolado poeta não restava senão lastimar a sua sorte e explicar por outros amores a invencível pertinácia da gentil menina.

E pois fé verdadeira, amor perfeito,
Tormento desigual e vida triste,
Junta com um continuo soffrimento
E um mal, em que o mal todo, emfim, consiste.
Não puderam mover teu duro peito
A mostrares sequer contentamento

De ver o meu tormento.
Antes tudo, soberba, desprezaste,

E a outrem te entregaste,
Por nada me ficar em que esperasse.

Senão quando acabasse
A vida, a pesar meu, já tão cumprida.
Perca quem te perdeu também a vida.
(Egloga 4ª).

E a infanta? A infanta continuava a ser a obsessão constante do poeta, apesar dos esforços que elle empregava para afastar do seu espirito as doces lembranças da passada gloria.

Doces lembranças da passada gloria.
Que -me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz uma hora.
Que comigo ganhais pouca victoria.

Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fora,
Ou fora e não passara; mas já agora
Em mi não póde haver mais que a memoria.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado.
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente !
(Soneto 18).

Amor, com a esperança já perdida,
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrágio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que mais queres de mi, pois destruida
Me tens a gloria toda que alcancei?
Não cuides de render-me, que não sei
Tornar a entrar-me onde não ha saída.

Vês aqui a vida e a alma e a esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Em quanto o quis aquella que eu adoro.

Nelles podes tomar de mi vingança;
E, se te queres inda mais vingado,
Contenta-te co as lagrimas que choro.
(Soneto 50).

Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mim resuscitais,
Dizei-me: E ainda vos não contentais
De ter, a quem vos tem, tão descontente?

Que phantasia é esta, que presente
Cada hora ante os olhos me mostrais?
Com uns sonhos tão vãos inda tentais
Quem, nem por sonhos, póde ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que é isto, que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me,
Porque, se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.
(Soneto 93).
[…]
In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT