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de wikipedia e jdact
«Era inevitável: o cheiro das
amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados. O
doutor Juvenal Urbino sentiu-o logo que entrou na casa ainda mergulhada em
sombras, à qual chegara acudindo à chamado de urgência para se ocupar de um
caso que para ele tinha deixado de ser urgente há muitos anos. O refugiado
antilhano Jeremiah de Saint-Amour, inválido de guerra, fotógrafo de crianças e
seu adversário de xadrez mais compassivo, se havia posto a salvo dos tormentos
da memória com uma fumigação de cianureto de ouro. Encontrou o cadáver coberto
com uma manta no catre de campanha onde sempre dormira, perto de um tamborete
com a vasilha que havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado pela
pata ao catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês preto de peito
nevado, e junto a ele estavam as muletas. O quarto sufocante e salpicado de
cores, que servia ao mesmo tempo de alcova laboratório, mal começava a se
iluminar com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante
para proclamar de pronto a autoridade da morte. As outras janelas, assim como
todas as frestas do aposento, estavam amordaçadas com trapos ou seladas com
papelão preto, o que aumentava a sua densidade opressiva.
Havia uma mesa grande atulhada de
frascos e vidros bojudos sem rótulo, e duas vasilhas de estanho descascado sob
um foco de luz ordinário coberto de papel vermelho. A terceira vasilha, a do
líquido fixador, era a que estava junto do cadáver. Havia revistas e jornais
velhos em todos os cantos, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis
quebrados, mas tudo estava preservado da poeira por mãos diligentes. Embora o
ar da janela houvesse purificado o ambiente, ainda persistia para quem soubesse
identificá-lo o rescaldo morno dos amores sem ventura das amêndoas amargas. O
doutor Juvenal Urbino havia pensado mais de uma vez, sem ânimo premonitório,
que aquele não era um lugar propício para se morrer na graça de Deus. Mas com o
tempo acabou por supor que a sua desordem obedecia talvez a uma determinação
cifrada da Divina Providência.
Um comissário de polícia se havia
adiantado com um estudante de medicina muito moço que fazia a sua prática
forense no dispensário municipal, e eles é que haviam arejado o aposento e
coberto o cadáver enquanto chegava o doutor Urbino. Ambos o cumprimentaram com
uma solenidade que dessa vez tinha mais de condolência que de veneração, pois
ninguém ignorava o grau de sua amizade com Jeremiah de Saint-Amour. O mestre
eminente apertou a mão de ambos, como jamais deixava de fazer com cada um dos
seus alunos antes de começar a aula diária de clínica geral, e depois segurou a
beira da manta com as pontas do índice e do polegar, como se fosse uma flor, e
descobriu o cadáver palmo a palmo com uma parcimónia sacramental. Estava nu em
pêlo, teso e torto, com os olhos abertos e o corpo azul, e parecia cinquenta
anos mais velho do que na noite anterior. Tinha as pupilas diáfanas, a barba e
os cabelos amarelados, e o ventre atravessado por uma cicatriz antiga costurada
com nós de ensacador. O trabalho das muletas tinha dado uma envergadura de
galeote ao seu torso e seus braços, mas as pernas inermes eram as de um órfão.
O doutor Juvenal Urbino contemplou-o um instante com o coração doendo, como
poucas vezes nos longos anos da sua contenda estéril contra a morte.
Poltrão, disse a ele. O pior já
tinha passado. Voltou a cobri-lo com a manta e recuperou a sua postura académica.
No ano anterior celebrara os seus oitenta com um jubileu oficial de três dias,
e no discurso de agradecimento resistiu uma vez mais à tentação de se
aposentar. Havia dito: terei tempo de sobra para descansar quando morrer, mas
essa eventualidade não figura ainda nos meus projectos. Embora ouvisse cada vez
menos com o ouvido direito e se apoiasse numa bengala com castão de prata para
dissimular a incerteza dos seus passos, continuava usando com a compostura dos
seus anos moços o fato completo de linho com o colete atravessado pela corrente
de ouro. A barba de Pasteur, cor de nácar, e o cabelo da mesma cor, muito bem
alisado e com o repartido nítido no centro, eram expressões fiéis do seu carácter.
Até onde podia, compensava a erosão cada vez mais inquietante da memória com
notas escritas às carreiras em papelzinhos avulsos, que acabavam por se
confundir em todos os seus bolsos, assim como os instrumentos, os vidros de
remédio, e outras tantas coisas embaralhadas na maleta atulhada. Não era só o
médico mais antigo e esclarecido da cidade, como também o homem mais atilado». In Gabriel
García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote,
2002, ISBN 978-972-200-032-1.
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