Cortesia
de wikipedia e jdact
Dia
de Finados
«(…) A avó apoiou-se ao
gradeamento da campa e ficou um instante recolhida depois de fazer o sinal da
cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a avó não se podia ter a
certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas completamente alheias à ocasião
e que tinham que ver com necessidades básicas, pequenas compras ou contactos
com as amigas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a não a afectara
muito. Os velhos são para morrer e as capoeiras devem ser remoçadas, com o
cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes
a fazia rir. Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! Ela ajuntou as pregas do
vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a
fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotografia
lhe levasse a alma, o que não deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou
que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos pés, até à cintura,
a massa de crisântemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do
que fora em nova. Paula tinha muitos ciúmes dela, passara o tempo a imitá-la,
rastejando em volta dela como um cãozinho que implorasse carinhos. A avó era
parca em beijos e afagos. Dão-me volta ao estômago, as crianças felizes
dispensam-nos muito bem, dizia. Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho
verificou o indestrutível dos cabelos foi quando abriram o túmulo de Patrícia
Xavier para procederem a reparações de alvenaria. Os cabelos estavam intactos.
Enrolados debaixo da cabeça reduzida a caveira completamente descarnada,
pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos
Nabasco e, por deferência, estando o túmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos
mortos desta família, Patrícia ficou sepultada numa antiga capela do cemitério
da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos Cravos.
Tinha as proporções majestosas
dum andar de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar,
donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam
alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre.
O lampadário, que viera de Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia
infiltrações e os ratos tinham roído papéis, talvez pagelas com a vida dos
santos ou restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os
cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrícia. Ela
ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, às quartas-feiras. Ao todo, quatro
mulheres vestidas a rigor e que calçavam luvas de suède e tomavam chá na
confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saíam para compras. Eram
mulheres em que se sentiam os hábitos caros, que não perguntavam o preço das
coisas, que se limitavam a mandar a casa. Não estavam dependentes do orçamento
e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia.
O género de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a última, como relíquia dum
tempo acabado, tempo de privilégios que tinham a sua moda, como os chapéus e as
receitas de pastelaria e os pudins sem um pó de farinha.
Patrícia Xavier fora a primeira a
faltar, como se dizia. Era alta, sempre bem calçada e com meias tão finas que
era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de
origem. Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi
assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era
permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo ficou encoberto e ela não
sofreu nenhum prejuízo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem
faltarem os presentes de Patrícia Xavier, coisas de preço como era costume ela
dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de
aligator ou assim. Patrícia foi sepultada na capela dos Nabasco, não porque não
houvesse lugar no jazigo da família dela, mas porque se levantou uma resistência
muito dura devido às causas da morte. Um aborto não era tão extraordinário e
sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos médicos para se
recomporem dum acidente que, na verdade, tinham previsto mas não acautelado.
Patrícia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer.
O
Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde
dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava, mas tudo
aquilo lhe parecia parte duma maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe
tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter
filhos e os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um
dia. Onde ouviste isso?, disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua
dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante
comprometida. Não sei. Comigo não faças mistérios. Não faço mistérios, não sou
pessoa para isso. Foi uma coisa que li. O que andas tu a ler, menina? Depois da
lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do
sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer? Faço. Já não te metias em
sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se
estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento!
Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. Tu nunca choras, Maria Rosa. Às vezes.
Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo à-rapaz. Dei
gritos tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós
vivíamos num chalé dentro dum jardim grande. Não querias parecer um rapaz». In
Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN
972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.
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