segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Ronda da Noite. Agustina Bessa Luís. «O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietação»

Cortesia de wikipedia e jdact

Dia de Finados
«(…) A avó apoiou-se ao gradeamento da campa e ficou um instante recolhida depois de fazer o sinal da cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que com a avó não se podia ter a certeza de nada. Decerto estava a pensar em coisas completamente alheias à ocasião e que tinham que ver com necessidades básicas, pequenas compras ou contactos com as amigas. Tinha poucas, grande parte delas tinham morrido, o que a não a afectara muito. Os velhos são para morrer e as capoeiras devem ser remoçadas, com o cacarejo alegre das novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e brilhantes a fazia rir. Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! Ela ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos, um receio de que a fotografia lhe levasse a alma, o que não deixava de ter algum fundamento. Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para ser retratada, tendo aos pés, até à cintura, a massa de crisântemos brancos e enormes. Era uma mulher linda, mais ainda do que fora em nova. Paula tinha muitos ciúmes dela, passara o tempo a imitá-la, rastejando em volta dela como um cãozinho que implorasse carinhos. A avó era parca em beijos e afagos. Dão-me volta ao estômago, as crianças felizes dispensam-nos muito bem, dizia. Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho verificou o indestrutível dos cabelos foi quando abriram o túmulo de Patrícia Xavier para procederem a reparações de alvenaria. Os cabelos estavam intactos. Enrolados debaixo da cabeça reduzida a caveira completamente descarnada, pareciam uma almofada. Martinho estava presente porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por deferência, estando o túmulo dos Xavier ocupado pelos sucessivos mortos desta família, Patrícia ficou sepultada numa antiga capela do cemitério da Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos Cravos.
Tinha as proporções majestosas dum andar de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas pingavam do altar, donde os candelabros de prata tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas com borras de vinagre. O lampadário, que viera de Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia infiltrações e os ratos tinham roído papéis, talvez pagelas com a vida dos santos ou restos de bouquets amarrotados como lixo e deixados a um canto. E os cabelos. Espessos, abundantes, como tantas vezes Martinho vira em Patrícia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa Nabasco, às quartas-feiras. Ao todo, quatro mulheres vestidas a rigor e que calçavam luvas de suède e tomavam chá na confeitaria Oliveira, uma vez por outra, quando saíam para compras. Eram mulheres em que se sentiam os hábitos caros, que não perguntavam o preço das coisas, que se limitavam a mandar a casa. Não estavam dependentes do orçamento e, praticamente, eram seguras do marido que tinham e da modista que as vestia. O género de mulheres de que Maria Rosa Nabasco era a última, como relíquia dum tempo acabado, tempo de privilégios que tinham a sua moda, como os chapéus e as receitas de pastelaria e os pudins sem um pó de farinha.
Patrícia Xavier fora a primeira a faltar, como se dizia. Era alta, sempre bem calçada e com meias tão finas que era preciso vesti-las com luvas, como se recomendava sempre na embalagem de origem. Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as salas descobrindo o segredo mais do que era permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos, aquilo ficou encoberto e ela não sofreu nenhum prejuízo no seu Natal em que tudo correu normalmente; sem faltarem os presentes de Patrícia Xavier, coisas de preço como era costume ela dar, caxemiras e estojos para as unhas de pele de qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim. Patrícia foi sepultada na capela dos Nabasco, não porque não houvesse lugar no jazigo da família dela, mas porque se levantou uma resistência muito dura devido às causas da morte. Um aborto não era tão extraordinário e sobretudo depois dos quarenta anos as mulheres recorriam aos médicos para se recomporem dum acidente que, na verdade, tinham previsto mas não acautelado. Patrícia disse apenas a Maria Rosa o que tencionava fazer.
O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve isto. Oito segundos é o recorde dele. Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá um dia. Onde ouviste isso?, disse Patrícia. Aquilo parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante comprometida. Não sei. Comigo não faças mistérios. Não faço mistérios, não sou pessoa para isso. Foi uma coisa que li. O que andas tu a ler, menina? Depois da lady Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora vens-me com essa do sexo único. Fazes ideia do que estás a dizer? Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar a uma clínica onde te remexem nas entranhas como se estivessem a abrir um cofre em oito segundos! Já é ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e chorar ao mesmo tempo. Tu nunca choras, Maria Rosa. Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro anos e me cortaram o cabelo à-rapaz. Dei gritos tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não era pequena distância; nós vivíamos num chalé dentro dum jardim grande. Não querias parecer um rapaz». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.

Cortesia de GuimarãesE/Rd’Água/JDACT