domingo, 28 de julho de 2019

O Corvo. Edgar Allan Poe. «Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro, e o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu’ria a madrugada…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
Uma visita, eu me disse, está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio Dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais.

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
Senhor, eu disse, ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi... E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
Por certo, disse eu, aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais.

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
Tens o aspecto tosquiado, disse eu, mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Diz-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.
Disse o corvo, Nunca mais».
[…]
In Edgar Allan Poe, (1809-1849), 1845, Lorimer Graham, O Corvo, tradução de Fernando Pessoa e Machado de Assis, Relógio d’Água, ISBN 978-989-641-075-9.

Cortesia de Rd’Água/JDACT