Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Gente, não a meto por enquanto: não a
havia nessa manhã em que desembarquei na Gafeira. De vivo, tudo quanto
encontrei foi a ladainha e os cães que estavam de sentinela ao poderoso
automóvel, e mesmo esses não se dignavam olhar-me. Gemiam, rancorosos, e arreganhavam
os dentes para as vozes que passavam por eles a contrapelo: Au...
aú-aúúú... Aúúú... Os uivos esfarrapavam a
ladainha e, naturalmente, haviam de chegar à igreja, que era acanhada e de
madeiros pintados, igreja pobre como se depreende. Aí abalariam os camponeses
na sua fé ensonada, inquietavam-nos (e não se esqueça que, momentos depois, eu
iria presenciar o desfile daquela gente à saída da missa, posso vê-la portanto
lá dentro: os homens de pé, as mulheres de joelhos. Filhas-de-Maria, de rosário
nos dedos; rapazes com transístores e blusões de plástico recebidos de longe,
duma cidade mineira da Alemanha ou das fábricas de Winnepeg, Canadá; moças de
perfil de luto, as viúvas de vivos, assim chamadas, sempre a rezarem pelos
maridos distantes, pedindo à Providência que as chame para junto deles e, uma
vez mais, agradecendo os dólares, as cartas e os presentes enviados... Chega.
Todos, homens e mulheres, estariam como mandam as narrações sagradas, isto é,
na apatia dos seus corpos cansados; todos a repetirem um ciclo de palavras,
transmitido e simplificado, de geração em geração, como o movimento da enxada.
E nisto..., eis os uivos, lá fora. Correu um murmurar de botas no soalho,
ouviu-se um choro de criança, e então, no altar-mor, talvez o Engenheiro se
tivesse voltado ligeiramente na cadeira.
Se assim foi (como é de crer que
tenha sido), tanto bastou para que um criado, por sinal maneta e mestiço,
deslizasse por entre os fiéis e viesse à rua calar os animais. Eu próprio o vi
sair ao terreiro na tal manhã em que cheguei à Gafeira. Passou por mim a
assoprar palavrões, cortado pelo sol e a balouçar o braço decepado. Só que,
para espanto meu, diante das feras tornou-se frio de repente e falou-lhes em
tom comedido. Dirigiu-se à primeira: lorde duma cana, que nunca mais tens
juízo... E começou a desatar-lhe a trela. Um, respondeu-lhe o lorde,
deitando-se por terra. Dirigiu-se à segunda fera, uma cadela: e tu? Queres
festa, maruja? Está-te a pular o pé? Um, respondeu a maruja. Um-um... E
empinou-se, de língua de fora, para o cumprimentar. Mas o mestiço afastou-se
secamente. Com a única mão, desprendeu os animais e conduziu-os para o outro
lado do largo. Escolheu duas argolas, amarrou-os com força e tão curto que
roçavam o focinho na parede, mal tocando o chão com as patas dianteiras. E
sempre a falar-lhes, sempre num sermão constante que, à distância onde me encontrava,
me parecia um discorrer de conselhos paternais. Causava assombro assistir a
semelhante tarefa de punição, à autoridade com que ele a executava e aos
movimentos precisos e eficazes da mão no governo de duas feras tão difíceis. Mão
arguta, pensei. Mão controlada.
Dois cães
e um escudeiro, como numa tapeçaria medieval,
e só depois se apresenta o amo em toda a sua figura: avançado na praça com a
esposa pela mão; blazer negro, lenço de seda ao pescoço. De entrada pareceu-me
mais novo do que realmente era, talvez pelo andar um tanto enfastiado, talvez,
não sei, pela maneira como acompanhava a mulher, de mão dada, dois jovens em
passeio. (Quando, na noite seguinte, o viesse a conhecer, compreenderia que,
afinal, o que pairava nele era o ar indefinido, o rosto sem idade de muitos
jogadores profissionais e amantes da vida nocturna. Mas continuemos.) Continuemos,
como naquela manhã, a seguir marido e mulher atravessando o largo. Havia sol a
jorros, brilho e ouro, e não a claridade sem vida deste final de Outubro a que
estamos a assistir e que desgraçadamente nasceu comprometido, irmão do Inverno.
Lembro-me bem de que na altura pensei na maravilha da luz do Outono, a melhor
de todas, e em duas moedas
resplandecentes, enquanto observava o casal em marcha para o Jaguar. Seriam
sessenta metros ao todo (ponhamos mesmo setenta, a avaliar pela distância a que
o meu carro está da igreja), setenta metros de silêncio e a passo de procissão,
através de camponeses endomingados e ainda entontecidos pela lenta e pesada
obrigação da missa. E eles avançando de cabeça levantada, mão na mão, sem um
cumprimento a quem quer que fosse; sem uma palavra entre ambos, e muito menos
para o mestiço que os esperava com os cães pela trela. Duas silhuetas de moeda,
dois infantes do meio-dia. Dois quê? Sorrio: infante nunca foi um termo meu. Saltou-me à ponta da
frase porque desde que cheguei que o tenho no ouvido. Então o infante? Não
encontrou o infante lá por Lisboa?
A palavra deve andar a correr neste
momento acolá, no café em frente. Não me admiraria muito. Infante para a esquerda, infante para a direita..., porque é no café
que o velho cauteleiro faz praça, com as suas duas tiras de lotaria penduradas
na gola do casaco. Só ele é que trata assim o Engenheiro, por Infante, e se
calhar julga-se com direito a isso. Talvez tenha razão. Talvez, insisto eu,
tenha mesmo necessidade desse direito, já que, além de vendedor de sortes
grandes e terminações, ele é o guia e o arauto da aldeia». In José
Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª
edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom Quixote,
1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.
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