quarta-feira, 10 de julho de 2019

O Delfim. José Cardoso Pires. «A palavra deve andar a correr neste momento acolá, no café em frente. Não me admiraria muito. Infante para a esquerda, infante para a direita..., porque é no café que o velho cauteleiro faz praça»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Gente, não a meto por enquanto: não a havia nessa manhã em que desembarquei na Gafeira. De vivo, tudo quanto encontrei foi a ladainha e os cães que estavam de sentinela ao poderoso automóvel, e mesmo esses não se dignavam olhar-me. Gemiam, rancorosos, e arreganhavam os dentes para as vozes que passavam por eles a contrapelo: Au... aú-aúúú... Aúúú... Os uivos esfarrapavam a ladainha e, naturalmente, haviam de chegar à igreja, que era acanhada e de madeiros pintados, igreja pobre como se depreende. Aí abalariam os camponeses na sua fé ensonada, inquietavam-nos (e não se esqueça que, momentos depois, eu iria presenciar o desfile daquela gente à saída da missa, posso vê-la portanto lá dentro: os homens de pé, as mulheres de joelhos. Filhas-de-Maria, de rosário nos dedos; rapazes com transístores e blusões de plástico recebidos de longe, duma cidade mineira da Alemanha ou das fábricas de Winnepeg, Canadá; moças de perfil de luto, as viúvas de vivos, assim chamadas, sempre a rezarem pelos maridos distantes, pedindo à Providência que as chame para junto deles e, uma vez mais, agradecendo os dólares, as cartas e os presentes enviados... Chega. Todos, homens e mulheres, estariam como mandam as narrações sagradas, isto é, na apatia dos seus corpos cansados; todos a repetirem um ciclo de palavras, transmitido e simplificado, de geração em geração, como o movimento da enxada. E nisto..., eis os uivos, lá fora. Correu um murmurar de botas no soalho, ouviu-se um choro de criança, e então, no altar-mor, talvez o Engenheiro se tivesse voltado ligeiramente na cadeira.
Se assim foi (como é de crer que tenha sido), tanto bastou para que um criado, por sinal maneta e mestiço, deslizasse por entre os fiéis e viesse à rua calar os animais. Eu próprio o vi sair ao terreiro na tal manhã em que cheguei à Gafeira. Passou por mim a assoprar palavrões, cortado pelo sol e a balouçar o braço decepado. Só que, para espanto meu, diante das feras tornou-se frio de repente e falou-lhes em tom comedido. Dirigiu-se à primeira: lorde duma cana, que nunca mais tens juízo... E começou a desatar-lhe a trela. Um, respondeu-lhe o lorde, deitando-se por terra. Dirigiu-se à segunda fera, uma cadela: e tu? Queres festa, maruja? Está-te a pular o pé? Um, respondeu a maruja. Um-um... E empinou-se, de língua de fora, para o cumprimentar. Mas o mestiço afastou-se secamente. Com a única mão, desprendeu os animais e conduziu-os para o outro lado do largo. Escolheu duas argolas, amarrou-os com força e tão curto que roçavam o focinho na parede, mal tocando o chão com as patas dianteiras. E sempre a falar-lhes, sempre num sermão constante que, à distância onde me encontrava, me parecia um discorrer de conselhos paternais. Causava assombro assistir a semelhante tarefa de punição, à autoridade com que ele a executava e aos movimentos precisos e eficazes da mão no governo de duas feras tão difíceis. Mão arguta, pensei. Mão controlada.

Dois cães e um escudeiro, como numa tapeçaria medieval, e só depois se apresenta o amo em toda a sua figura: avançado na praça com a esposa pela mão; blazer negro, lenço de seda ao pescoço. De entrada pareceu-me mais novo do que realmente era, talvez pelo andar um tanto enfastiado, talvez, não sei, pela maneira como acompanhava a mulher, de mão dada, dois jovens em passeio. (Quando, na noite seguinte, o viesse a conhecer, compreenderia que, afinal, o que pairava nele era o ar indefinido, o rosto sem idade de muitos jogadores profissionais e amantes da vida nocturna. Mas continuemos.) Continuemos, como naquela manhã, a seguir marido e mulher atravessando o largo. Havia sol a jorros, brilho e ouro, e não a claridade sem vida deste final de Outubro a que estamos a assistir e que desgraçadamente nasceu comprometido, irmão do Inverno. Lembro-me bem de que na altura pensei na maravilha da luz do Outono, a melhor de todas, e em duas moedas resplandecentes, enquanto observava o casal em marcha para o Jaguar. Seriam sessenta metros ao todo (ponhamos mesmo setenta, a avaliar pela distância a que o meu carro está da igreja), setenta metros de silêncio e a passo de procissão, através de camponeses endomingados e ainda entontecidos pela lenta e pesada obrigação da missa. E eles avançando de cabeça levantada, mão na mão, sem um cumprimento a quem quer que fosse; sem uma palavra entre ambos, e muito menos para o mestiço que os esperava com os cães pela trela. Duas silhuetas de moeda, dois infantes do meio-dia. Dois quê? Sorrio: infante nunca foi um termo meu. Saltou-me à ponta da frase porque desde que cheguei que o tenho no ouvido. Então o infante? Não encontrou o infante lá por Lisboa?
A palavra deve andar a correr neste momento acolá, no café em frente. Não me admiraria muito. Infante para a esquerda, infante para a direita..., porque é no café que o velho cauteleiro faz praça, com as suas duas tiras de lotaria penduradas na gola do casaco. Só ele é que trata assim o Engenheiro, por Infante, e se calhar julga-se com direito a isso. Talvez tenha razão. Talvez, insisto eu, tenha mesmo necessidade desse direito, já que, além de vendedor de sortes grandes e terminações, ele é o guia e o arauto da aldeia». In José Cardoso Pires, O Delfim, 1.ª edição, Moraes Editores, Lisboa, 1968, 10.ª edição, Publicações Dom Quixote, 1988, 2003, ISBN 972-201-654-7.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT