quarta-feira, 24 de julho de 2019

Antologia de Poesia Portuguesa. Natália Correia. «Dão-nos um nome e um jornal, um avião e um violino, mas não nos dão o animal que espeta os cor… no destino»

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Erótica e Satírica
 «Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino,
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cor… no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte»

In Natália Correia, Antologia de Poesia Portuguesa, Erótica e Satírica, Dos Cancioneiros Medievais à Actualidade, 1965, 1966, 1999, Herdeiros de Natália Correia, Cruzeiro Seixas, Ponto de Fuga, 2019, ISBN 978-989-888-115-1.

Cortesia de PontodeFuga/JDACT