domingo, 14 de julho de 2019

A Estranha Ordem das Coisas. António Damásio. «Porque seriam capazes os sentimentos de levar a mente a agir de forma tão sensata e vantajosa? Um dos motivos advém daquilo que os sentimentos realizam na mente e fazem à mente»

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Da condição humana. Uma ideia simples
«Eis a ideia simples que tenho vindo a considerar. Se nos ferimos e sentimos dor, seja qual for a causa do ferimento ou o perfil da dor, temos a possibilidade de remediar o problema. A variedade de situações que podem causar sofrimento humano inclui não só as lesões físicas, mas também o tipo de dor que resulta da perda de um ente querido ou de uma humilhação. A recuperação constante de memórias associadas mantém e amplifica o sofrimento, porque a memória ajuda a projectar a situação para um futuro imaginado e permite-nos antever as consequências. Seja qual for a causa, os seres humanos seriam capazes de reagir ao sofrimento tentando compreender esse seu calvário e inventando compensações, correcções ou soluções de eficácia radical.
A par da dor, os seres humanos seriam também capazes de viver o seu oposto, prazer e entusiasmo, numa grande variedade de situações, desde as simples e banais às sublimes, desde o prazer que constitui a reacção a paladares e cheiros, comida, vinho, sexo e confortos físicos, ao espanto e à iluminação que advêm da contemplação de uma paisagem, ou à admiração e ao afecto profundos sentidos em relação a outra pessoa. Os seres humanos também terão descoberto que exercer poder, dominar e até destruir os outros, provocando caos puro e saqueando, podia proporcionar prazer. Também nestes casos os seres humanos poderiam empregar tais sentimentos com um objectivo prático: como motivo para questionar a razão por que a dor existe, e talvez para se fascinarem com o facto bizarro de que, em determinadas circunstâncias, o sofrimento dos outros pode ser gratificante. Talvez usassem os sentimentos relacionados, entre eles medo, surpresa, fúria, tristeza e compaixão, como guia para imaginarem formas de contrariar o sofrimento e as suas origens. Aperceber-se-iam de que entre a variedade de comportamentos sociais disponíveis, alguns, a pertença a um grupo, a amizade, o carinho, o amor, representavam o oposto da agressividade e da violência, estando directamente associados não só ao bem-estar dos outros, mas também ao bem-estar próprio.
Porque seriam capazes os sentimentos de levar a mente a agir de forma tão sensata e vantajosa? Um dos motivos advém daquilo que os sentimentos realizam na mente e fazem à mente. Em circunstâncias normais, a cada momento, os sentimentos indicam à mente, sem que profiram qualquer palavra, o bom ou mau rumo dos processos da vida no interior do respectivo corpo. Ao fazê-lo, os sentimentos estão naturalmente a qualificar o processo vital como sendo ou não conducente ao bem-estar e ao desenvolvimento.
Outro motivo por que os sentimentos seriam bem-sucedidos onde as simples ideias falham tem a ver com a sua natureza particular. Os sentimentos não são uma fabricação independente do cérebro. Eles resultam de uma colaboração entre corpo e cérebro, os quais interagem graças a moléculas químicas e vias nervosas. Esta relação única entre corpo, e cérebro, em geral ignorada, garante que os sentimentos perturbem aquilo que, na sua ausência, seria um fluxo mental indiferente. É a vida na corda bamba, entre o florescimento e a morte, que dá origem ao sentimento. Consequentemente, os sentimentos são perturbações mentais, preocupantes ou gloriosas, gentis ou intensas». In António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, Da condição Humana, 2017, Temas e Debates, Bertrand Editora, Círculo de Leitores, 2017, ISBN 978-989-644-334-4.

Cortesia de TeD/CL/BertrandE/JDACT