quarta-feira, 10 de julho de 2019

O Manuscrito do Imperador. Valeria Montaldi. «De vez em quando, aqui e ali subia um grito de exultação e alguém partia correndo, apertando ao peito um vaso, uma garnacha de petigris, um alforje cheio»

Cortesia de wikipedia e jdact

… destas cidades restará o vento que as atravessa… In Bertolt Brecht

Parma. 1248
«A mulher estava caída de costas. A veste, repuxada até ao seio, deixava descoberto o ventre; as tiras da camisola, rasgada no meio, pendiam dos lados das coxas abertas. O armeiro atou de novo os calções na cintura e encarou-a. Os olhos aterrorizados que o fitaram provocaram-lhe nova comichão na virilha, mas só por um instante. Ele puxou o punhal do gibão, agarrou a mulher pelos cabelos e lhe cortou a garganta. Por um momento longuíssimo, um gorgolejo horrível encheu a saleta de estudos, e depois veio o silêncio. A cabeça da jovem sarracena tombou para trás e do talho no pescoço o sangue começou a jorrar em golfadas sobre o pavimento. O homem limpou a lâmina na veste da mulher e deu uma risadinha de escárnio: logo ele, um humilde armeiro de Parma, matara a pu… do imperador! Assim que toda aquela história acabasse, começaria a se vangloriar na estalagem, explicando como se servira dela antes de degolá-la. Até enriqueceria a narrativa com todos os detalhes truculentos que conseguisse inventar, e seus comparsas de bebedeira ficariam embasbacados. Recobrou-se dessa fantasia. Tinha de executar a tarefa que lhe fora atribuída e devia fazer isso de imediato, já perdera tempo demais.
Travou a porta atrás de si e observou atentamente o local: uma escrivaninha de cavaletes e um assento de viagem estavam encostados à parede. Um pouco adiante, semioculto por uma cortina de couro lavrado que pendia da trave do forro, havia um cofre de prata maciça. Experimentou a tampa: estava trancada. Soltou uma imprecação. Onde diabos estaria a chave? Estava ali, em algum lugar, ou Frederico a levara consigo ao deixar o acampamento? A escrivaninha era desprovida de gaveta e sobre o tampo havia apenas um tinteiro, uma pena de ganso e um pergaminho raspado várias vezes. De chave, nem sombra. Devia procurá-la. Olhou ao redor. Logo atrás de uma baixa divisória de madeira entalhada com motivos espiraliformes, entrevia-se um leito. Contornado o biombo, ele agarrou o colchão de plumas e manteve-o levantado com o braço esquerdo, enquanto, com a mão direita, vasculhava o estrado de madeira subjacente. Depois de apalpar quase todas as tábuas, os seus dedos perceberam, ao longo de uma fissura, uma trouxinha de pano. Pegou-a e abriu-a: no meio do tecido apareceu a chave.
Exultante, virou-se e a inseriu na fechadura. O cofre abriu. No fundo, jazia uma sacola de couro. Nada mais. Tirou-a, desatou rapidamente os cordões e fez deslizar para fora o que ela continha. Quando a sua mente compreendeu o significado daquilo que os seus olhos fitavam, brotou-lhe da garganta um grito de júbilo. Ali estavam os pergaminhos! Excitado, ajoelhou-se e apoiou-os sobre o pavimento, começando a percorrer apressadamente as folhas. No primeiro, a letra inicial do texto era decorada com uma figura humana envolta em vermelho. Um friso, azul como a esfera na qual estava pintada a imagem e pontilhado por arabescos dourados, corria ao lado das duas colunas de texto e emoldurava toda a página: as dez folhas que se seguiam eram cobertas de linhas redigidas com tinta preta. O armeiro não sabia ler, mas podia apostar que aquele era de facto o tratado escrito por Frederico. Os pergaminhos mantidos sob chave e a imagem miniaturada convenceram-no de que havia finalmente encontrado o tesouro que lhe haviam pedido para roubar.
Repôs o livro na sacola, fechou-a e atou os cordões ao seu cinto. Do pavimento onde o jogara, recolheu o manto e o envolveu em torno do corpo. Em seguida, após lançar uma última olhadela distraída ao cadáver da sarracena, aproximou-se da soleira da saleta e encostou o ouvido à porta: do corredor não provinha nenhum ruído. Abriu-a e, em passos amortecidos, enveredou pela escada de madeira. No vestíbulo não havia ninguém. Deslizando silencioso pela penumbra, alcançou o portal e saiu, cauteloso. A fumaça do incêndio lhe cortou a respiração. Das ruínas dos alojamentos militares que até à véspera haviam abrigado o exército do imperador ainda se erguiam delgadas línguas de fogo que aos poucos iam se apagando. Abafados pela distância, mas claramente distinguíveis, do fundo do campo chegavam até ali os barridos (som dos elefantes) e rugidos dos animais exóticos aprisionados no cercado. Surdos àqueles sons terrificantes, grupos de homens e mulheres circulavam pelo acampamento.
Agitados, saltavam os cadáveres dos guardas imperiais e, com gestos febris, remexiam os destroços. De vez em quando, aqui e ali subia um grito de exultação e alguém partia correndo, apertando ao peito um vaso, uma garnacha de petigris, um alforje cheio. Esfregando os olhos lacrimejantes pela fumaça, o armeiro examinou o campo. Estava coberto de cadáveres. Moveu-se às pressas, serpenteando por aquele amontoado de corpos. O seu pé bateu num joelho ainda coberto pela perneira. Com um estalido, o membro se desprendeu de chofre, revelando a enorme poça de sangue que se espalhava pelo terreno. O armeiro escorregou sobre aquela massa viscosa e caiu de bruços, indo parar em cima do morto: pela viseira aberta do elmo, dois olhos cegos o fitavam, ainda arregalados numa expressão de terror». In Valeria Montaldi, O Manuscrito do Imperador, 2008, Grupo Editorial Record, 2011, ISBN 978-850-108-703-4.

Cortesia de GERecord/JDACT