quinta-feira, 4 de julho de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Ben Isaac estava a fazer tudo para salvar o seu casamento. Myriam não estava pelos ajustes e dera-lhe um ultimato. O banco ou ela. Fora por essa razão que acedera a fazer o cruzeiro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) E depois as coisas foram acontecendo com a naturalidade dos dias que passam. Mais encontros, mais confabulações, mais beijos e outras coisas, de acordo com a agenda de cada um. Francesco parecia, cada vez mais, cativo da transparência de Sarah. Não havia capas ou papéis indefinidos. Era sempre ela, a Sarah, autêntica, ao telefone na redacção, a fazer o pedido ao empregado no restaurante, aos beijos no quarto. Não havia outra Sarah que não aquela, à frente dele, e ele adorava isso. Olha que não me pareceram nada maus. Percebe-se por que são tão badalados, proferiu Francesco, fazendo-a regressar à confortável suite do hotel romano. Andaste a lê-los?, perguntou enunciando um falso ar de escândalo. Quem te autorizou? Precisava de saber se ia apresentar uma anticatólica à minha mãe, respondeu Francesco, sério. Mas já fiquei descansado. São livros sobre homens e não sobre religião, explicou Sarah. Sim. Na verdade acho que a minha mãezinha concordará contigo em alguns pontos. Podíamos dar um salto a Ascoli quando despachares a promoção, que achas? Não te parece demasiado prematuro?, arguiu Sarah. A mim não. Leva o tempo que precisares com a promoção do teu livro. Não te incomodarei. Assim que estejas livre fazemos esse desvio pelo Nordeste.
É só uma conferência na La Feltrinelli da Piazza della Torre Argentina, informou Sarah a pensar na proposta. Francesco inclinou-se sobre ela. És uma herege muito apetecível. Queres ver se me levas para a cama, meu canalha?, gozou Sarah com lascívia. Deixas? Francesco optou pelo ar de menino inocente. Deixo..., disse Sarah. Não sei é se a tua mãezinha deixa, atirou. Oh. Queres guerra? Iniciou-se uma batalha campal com almofadas e ameaças e beijos fogosos. Vais pagá-las, brincou o italiano. És muito caro?, provocou Sarah ainda mais. Quando as hostilidades foram suspensas e se deitaram os dois arquejantes, de barriga para cima, suados, um sorriso invadia-lhes os lábios. Amo-te, disparou Francesco. Semelhante a uma bala direccionada com precisão, atingiu Sarah com uma força tal que a fez arrepiar e desistir do sorriso. O que se fazia nestes casos? Não tinha resposta. Pelo menos não naquele momento. Mas Francesco não era apenas um palmo de cara bonita, oco por dentro. Via longe e mudou de assunto. Ou então não reparou no silêncio incómodo. Ainda não me contaste quem é o bispo ou cardeal que te anda a contar essas coisas todas, disse meio a gozar meio a sério. Uma mulher nunca conta, redarguiu pensativa. A mente levara-a novamente a Rafael a quem já não via ou ouvia há meses.

Ben Isaac estava a fazer tudo para salvar o seu casamento. Myriam não estava pelos ajustes e dera-lhe um ultimato. O banco ou ela. Fora por essa razão que acedera a fazer o cruzeiro quando o grupo financeiro que administrava enfrentava momentos tão delicados. O filho deles, com o nome do pai, tomou conta dos negócios da família durante um mês. Ben Júnior, de 27 anos, já há muito que desempenhava funções na administração das empresas, mas sempre sob o olhar atento e avalizador do pai. Desta vez era diferente. O pai estava enfiado num barco com a mãe a devanear pelo Mediterrâneo. O Ben Júnior fazia um resumo nocturno de tudo o que se passara durante o dia. A mãe tolerava essa conversa desde que não excedesse um quarto de hora. Ben aproveitava para aconselhar o filho com a experiência que acumulara ao longo dos anos. Não era bom marido, nem pai, mas na banca ninguém o derrotava. Pensava que com a idade os negócios pesariam cada vez menos na sua vida e as coisas modificar-se-iam, mas enganara-se. Os objectivos iam-se alterando. Primeiro, queria o melhor para si, depois o melhor para Myriam, depois... Magda, a seguir o melhor para o filho e, neste momento, queria simplesmente deixar um legado magnífico, à prova de intempéries ou más decisões. Quando morreres deixas cá tudo, admoestara-o Myriam, alterada, numa das muitas discussões que tiveram, não levas nem um penny». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT