domingo, 28 de julho de 2019

O Amor nos Tempos de Cólera. Gabriel García Márquez. «Nada de particular, disse. São as suas últimas instruções. Era uma meia verdade, mas eles acreditaram, porque ele lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um caderno…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Na escrivaninha, junto a um pote com vários cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrez com uma partida inconclusa. Apesar de sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior, pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo menos com três adversários diferentes, mas chegava sempre até ao final e guardava depois o tabuleiro e as pedras na sua caixa, e guardava a caixa numa gaveta da escrivaninha. Sabia que jogava com as peças brancas, e aquela vez era evidente que ia ser derrotado sem salvação em quatro jogadas mais. Se tivesse sido um crime, aqui haveria uma boa pista, disse a si mesmo. Só conheço um homem capaz de compor esta emboscada de mestre. Não teria podido viver sem averiguar mais tarde por que aquele soldado indómito, acostumado a se bater até à última gota de sangue, havia deixado por terminar a guerra final de sua vida.
Às seis da manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-nocturno tinha visto o letreiro pregado na porta da rua: Entre sem tocar e avise a polícia. Pouco depois acudiu o comissário com o estudante, e ambos tinham revistado a casa em busca de alguma evidência contra o bafo inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos breves minutos que durou a análise da partida inconclusa, o comissário descobriu entre os papéis da escrivaninha um envelope dirigido ao doutor Juvenal Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário despedaçá-lo para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela para ter melhor luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas escritas dos dois lados com uma caligrafia caprichada, e logo que leu o primeiro parágrafo compreendeu que tinha perdido a comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada, voltando atrás em várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou parecia regressar de muito longe e de muito tempo. O seu abatimento era visível, apesar do esforço que fazia para ocultá-lo: tinha nos lábios a mesma coloração azul do cadáver, e não pôde dominar o tremor dos dedos quando tornou a dobrar a carta e a guardou no bolso do colete. Então lembrou-se do comissário e do médico jovem, e sorriu aos dois das brumas do seu abatimento.
Nada de particular, disse. São as suas últimas instruções. Era uma meia verdade, mas eles acreditaram, porque ele lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e ali encontraram um caderno de contas muito usado onde estavam as chaves para abrir o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia de sobra para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos menores. O doutor Urbino já estava então consciente de que não conseguiria chegar à catedral antes do Evangelho. É a terceira vez que perco a missa de domingo desde que tenho uso de razão, disse. Mas Deus entende.
Preferiu por isso demorar mais uns minutos para deixar todos os pormenores esclarecidos, embora mal pudesse suportar a ansiedade de compartilhar com a sua esposa as confidências da carta. Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade, caso quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado como o mais respeitável de todos, o mais activo e radical, mesmo depois de se tornar demasiado evidente que havia sucumbido à sedimentação do desencanto. Também avisaria seus parceiros de xadrez, entre os quais havia tantos profissionais insignes como artesãos obscuros, e a outros amigos menos assíduos, mas que talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha resolvido que ele era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de nada. De todas as maneiras iam mandar uma coroa de gardênias, pois podia ser que Jeremiah de Saint-Amour tivesse tido um último minuto de arrependimento. O enterro seria às cinco, que era a hora propícia nos meses de mais calor. Se precisassem dele estaria desde as doze na casa de campo do doutor Lácides Olivella, seu discípulo amado, que aquele dia celebrava com um almoço de gala as bodas de prata profissionais. O doutor Juvenal Urbino tinha uma rotina fácil de seguir, desde que haviam ficado para trás os anos tempestuosos dos primeiros embates, e conseguiu uma respeitabilidade um prestígio que não tinham igual na província. Levantava-se com os primeiros galos, e a essa hora começava a tomar os seus remédios secretos: brometo de potássio para levantar o ânimo, salicilatos para as dores dos ossos em tempo de chuva, gotas de cravagem de centeio para as vertigens, beladona para o bom dormir. Tomava alguma coisa a cada hora, sempre às escondidas, porque na sua longa vida de médico e mestre foi sempre contrário a receitar paliativos para a velhice: achava mais fácil suportar as dores alheias que as próprias. No bolso levava sempre um cristal de cânfora que aspirava fundo quando não tinha ninguém olhando, para se livrar do medo de tantos remédios misturados». In Gabriel García Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Publicações dom Quixote, 2002, ISBN 978-972-200-032-1.

Cortesia PdomQuixote/JDACT