terça-feira, 23 de julho de 2019

A indumentária feminina nos jacentes portugueses dos séculos XIII a XV. Clara Ribeiro. «Os indivíduos que não tinham bens de raiz nem nada de importante a testar, não o faziam. Por outro lado, de acordo com os distintos estratos sociais…»

Cortesia de wukipedia e jdact

«O objectivo deste trabalho foi desvendar que imagens projectam os jacentes femininos de Duzentos, Trezentos e Quatrocentos das mulheres que os mandaram esculpir ou foram assim representadas pelos seus maridos e filhos. Utilizámos como fonte principal a indumentária desses jacentes por reconhecermos que ela é um importante factor de construção de identidades sociais e de género. Não desdenhámos, contudo, os elementos decorativos patentes nos respectivos monumentos funerários, que exprimem igualmente crenças e valores individuais e colectivos. Chegámos à conclusão que, com raras excepções, as damas que encomendaram os seus próprios túmulos optaram por uma imagem de recato e devoção, enquanto os familiares, sem esquecerem essa dimensão das suas vidas, preferiram fazer uma representação das suas esposas, mães ou netas que exaltava a sua feminilidade e elegância».

O imaginário de além-túmulo e os rituais da morte na Idade Média Portuguesa
«Saber, pois, como é que o homem enfrenta a morte e como procura, de alguma maneira, dominá-la, ilusoriamente ou não, tal é, creio eu, uma das mais decisivas formas de compreender os últimos fundamentos da mentalidade colectiva, em cada época ou em cada contexto cultural»

«A atitude desta época, face à morte, provém de crenças progressivamente implantadas pela Igreja e de rituais religiosos criados, por vezes, a partir de costumes ancestrais. Mesmo depois da introdução do cristianismo no território, ainda se sentiam certas dificuldades em aceitar algumas práticas religiosas, havendo memória de tradições pagãs. Evitar a morte súbita era uma das principais preocupações na Idade Média, uma vez que ela impedia o homem medieval de se preparar atempadamente para esse evento. Designava-se de boa morte aquela que começava com a premonição de que o dia do óbito estaria a chegar, dando tempo ao defunto para preparar essa viagem através da redacção do testamento, de modo a deixar todas as preocupações terrenas solucionadas. Para os cristãos, era muito importante resolver os seus problemas antes da morte, sendo, por isso, a redacção do testamento algo de muito prezado na Idade Média. A morte, propriamente dita, não era temida, o que se temia era a incerteza quanto à hora da sua chegada e ao destino da alma, uma vez que se acreditava que esta era imortal e a sua salvação era aquilo que mais importava. Essa redacção era um acto individual realizado devido a diversos factores: idade avançada, doença, guerra ou outros. Embora o testamento respeitasse à família mais próxima do testador e ao pequeno grupo em que ele se inseria, a expressão da derradeira vontade constituía um acto único e exclusivo de quem partia.
Os testamentos eram textos redigidos com o pensamento constante e sempre presente da inevitabilidade da morte, e tinham como finalidade, para além de transmitir os bens móveis e imóveis do testador, assegurar a salvação da sua alma através de obras de caridade, orações, missas. Este último registo das vontades expressas pelo homem medieval determinou, como intermediário indispensável, o tabelião. A ele se ditavam todos os legados, boas acções e missas que se pretendia fossem realizados, descrevendo exactamente como e quando deveriam ser executados. Por vezes, ao tabelião eram mesmo oferecidos pelo testador alguns dos seus bens. Outros bens materiais e o próprio corpo eram doados a casas religiosas e igrejas, e a alma era entregue a Deus, como sendo uma entidade independente. Nem todas as pessoas deixavam algum documento a testar o que quer que fosse. Os indivíduos que não tinham bens de raiz nem nada de importante a testar, não o faziam. Por outro lado, de acordo com os distintos estratos sociais, era diferente o tipo de vontades que iriam deixar expressas aquando da redacção do testamento. A doação de bens dependia da ligação que o testador possuía com as instituições monásticas e a sua igreja paroquial, como já foi referimos, mas também com certas pessoas próximas. Disso é exemplo a aia de dona Isabel de Aragão, dona Vataça Lascaris, que no seu primeiro testamento, redigido em 1323, em Santiago do Cacém, deixou a sua alma a Santa Maria, para ser apresentada a Jesus Cristo, e o seu corpo e bens à tutela de dona Isabel de Aragão, mostrando uma confiança total na sua senhora e presenteando-a com diversos bens, desde peças de vestuário a um livro do Génesis e um relicário em ouro, sinais da sua devoção». In Clara Ribeiro, A indumentária feminina nos jacentes portugueses dos séculos XIII a XV, Mestrado em Arqueologia, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2014.

Cortesia de ULisboa/Fletras/JDACT