Cortesia
de wikipedia e jdact
«No alto do cabeço, o barbeiro
tirava o cigarro da boca, como se o desembaraçasse do bigode, chegava-o ao
pavio e fazia cara feia enquanto segurava o foguete de braço esticado, a jorrar
fagulhas, antes de o largar. Era um bicho ruim que queria ser solto. Mal podia,
num ruído de lixa, esfregava-se no ar e estourava uma bola de fumo no céu,
espécie de nuvem anã. De pescoço dobrado para trás, o Ilídio e o Cosme
encostavam as mãos à testa para verem esse efeito. A cana, desarmada, indefesa,
via-se sem pé e deixava-se cair sobre os campos, coitada». In José Luís
Peixoto
«(1948)
A mãe pousou o livro nas mãos do
filho. Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objecto
que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta,
entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção,
distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar
enquanto objecto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstracta,
enquanto intenção, enquanto sombra de um acto. A mãe disse o nome do filho: O
rapaz, Ilídio, estava nesse momento a tentar imaginar a vontade da mãe e, o que
pretendia ao entregar-lhe aquele livro, que era grande de mais para as suas
mãos, mas que não era demasiado pesado. A mãe voltou a dizer o nome do filho,
Ilídio. E as cores da mãe voltaram a definir-se diante dele. Escuta.
Esta palavra simples, de sílabas
simples, foi entendida pelo Ilídio de modo completo, estava a ouvi-la antes de
ser dita e continuou a ouvi-la no silêncio que se lhe seguiu. Aquela voz a
dizer aquela palavra fazia parte do Ilídio. Podia ouvi-la na cabeça sempre que
quisesse. Em certas noites quando se agarrava à mãe e, ao quente, sem ser capaz
de dormir, ouvia pedaços da voz da mãe, rasgados, a passarem-lhe pela cabeça
como serpentinas. Numa dessas noites, ou em várias, é bem possível que tenha distinguido
essa maneira de paz com que a mãe sempre lhe dizia: escuta. Havia tons de voz
que a mãe só utilizava para certas palavras ou expressões, como quando se saturava
e dizia: por favor, a esculpir cada consoante, com um grande silêncio entre por
e favor, a soprar no fim; ou como quando dizia: ora, é só lérias e mais lérias
e dava uma gargalhada; ou como quando dizia: tu queres é remolgaria e parodim,
e parecia que estava a cantar. Não faltariam exemplos de palavras que conseguia
lembrar na voz da mãe. O Ilídio tinha fome.
Chegava
de longe o cacarejar de uma galinha, chegava do quintal do vizinho, do outro
lado do muro. Era um cacarejar permanente, quase a adormecer, quase a arrastar-se,
mas a continuar sempre. Era um cacarejar que, assente sobre aquela hora da
tarde, parecia distribuir uma misteriosa harmonia, como o milho moído que,
muitas vezes, o vizinho lançava sobre a terra do quintal. O Ilídio sabia que,
normalmente, a galinha comia pedras e, em momentos assinalados, lutava com
minhocas, que vencia num duelo desigual. Do cimo da pilha de lenha, já a tinha
visto. Em ocasiões, colocou a possibilidade de provar minhoca. Quando a galinha
as esticava com o bico, as rebentava e exibia o seu interior, pareciam-lhe
deliciosas. A mãe ia dizer alguma coisa importante. A mãe era uma mulher que
falava muito e ria muito. O Ilídio chamava-a quando queria que ela visse alguma
coisa, ela olhava, mas não parava de rir ou de falar. Ali, naquela hora, a mãe
dizia as palavras uma a uma, como se só pudesse usar poucas e tivesse de
escolhe-las muito bem. Havia demasiado silêncio. O Ilídio sentia isto, mas não
era capaz de saber as palavras para dizê-lo a si próprio. Isto era qualquer
coisa que sentia como a mudança da hora no Verão, no Inverno, como os dias de
semana, o sábado, a quarta-feira e muitas outras coisas que sentia sem
conhecer. O Ilídio esperava, tinha seis anos, estava tranquilo. A mãe disse: nunca
esqueças». In José Luís Peixoto, Livro, Quetzal Editores, 2010, ISBN 978-972-564-899-5.
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